Psicoterapia em Pacientes com a Síndrome de Asperger

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Esta publicação tem como objetivo lançar luz sobre as particularidades da psicoterapia para pessoas portadoras de TEA, em especial para os casos de Autismo de Alto Funcionamento e/ou Síndrome de Asperger, por ser este um dos grupos que mais sofrem interpretações e conduções psicoterapêuticas indevidas dada a não obviedade dos sintomas. Os esclarecimentos aqui contidos visam beneficiar todos os envolvidos no processo, sejam profissionais, pacientes ou familiares. A área da psicologia tem um trabalho importante a oferecer e, para tanto, precisa capacitar-se para desenvolvê-lo de forma adequada, assim como os pacientes e suas famílias também precisam de informação que lhes ofereça melhores condições de avaliar o trabalho psicoterapêutico em curso e reconhecer quando a terapia não flui como deveria, ou seja, quando não se ajusta à realidade e necessidades do paciente.

Ao final desta introdução, encontra-se a tradução de trechos do livro The Complete Guide to Asperger’s Syndrome (O Guia Completo da Síndrome de Asperger), do especialista britânico Tony Attwood, cujo trabalho é referência internacional sobre o assunto.

 

Introdução

Por Audrey Bueno 

Muito se ouve sobre como a psicoterapia pode ajudar a pessoa com autismo. Quando uma família recebe o diagnóstico de autismo de um filho ou a escola começa a ter dificuldades para lidar com o comportamento da criança, uma das principais recomendações é buscar acompanhamento psicológico. Outras vezes, ao notar algo atípico no funcionamento da criança, antes mesmo de qualquer diagnóstico e até na tentativa de obtê-lo, a própria família procura primeiro um psicólogo. Isso se deve, em parte, à crença socialmente difundida de que o psicólogo é aquele que detém toda a informação sobre os processos mentais e comportamento humano, o que não é verdade, uma vez que tais questões também pertençam ao campo de estudo da neurologia e psiquiatria, onde cada área estudará uma das diferentes facetas implicadas no processamento mental.

No entanto, embora muito se sugira a busca por um psicólogo, pouco se discute sobre o quão capacitados os profissionais da área de psicologia estão para, de fato, compreenderem pessoas no espectro do autismo. A psicoterapia errada pode, sim, trazer malefícios em vez de benefícios, desde um agravamento de problemas até o diagnóstico tardio e culpabilização indevida do próprio paciente ou dos pais. As teorias psicológicas pautam-se em funcionamentos de pessoas sem autismo, e o curso de graduação em Psicologia tem seu foco em processos psíquicos e emocionais que não levam em conta fatores genéticos e alterações biológicas do cérebro, que é justamente onde o autismo se insere, de modo que não prepare o profissional para identificar, compreender e lidar com transtornos do neurodesenvolvimento.

Porém, existe uma linha da psicologia que oferece a chamada TCC – Terapia Cognitivo-Comportamental. Este tipo de abordagem da psicologia difere das demais por ter maior conhecimento acerca do funcionamento comportamental humano e mais estratégias de modelagem (geração ou extinção) do comportamento. Por isso, costuma ser uma das formas de terapia psicológica mais recomendadas para pessoas no espectro do autismo, pois é a que apresenta mais resultados concretos para mais pessoas autistas, embora não para todas e, em especial, com maior taxa de não-adesão ou de benefícios obtidos para o grupo de pacientes com a síndrome de Asperger.

De qualquer forma, é uma das terapias mais recomendadas, pois, como veremos abaixo,  as psicoterapias mais tradicionais tendem a cometer erros de interpretação e inadequada atribuição de causa-efeito quando analisando pacientes autistas, pois é comum em sua prática clínica atrelar cada comportamento ou sentimento predominantemente à interpretações subjetivas de história de vida, análise do inconsciente ou, no caso de crianças, ao sistema familiar, relação com a mãe e outras considerações nessa esfera, enquanto muitas das dificuldades autistas são biologicamente determinadas, por disfunções neurológicas e déficits em certas áreas de processamento mental.

Atualmente, psiquiatras e neurologistas são os profissionais de escolha para avaliação diagnóstica em caso de suspeita de autismo, mas é preciso que o psicólogo tenha uma base de conhecimento suficiente que o permita fazer o encaminhamento necessário para estes profissionais em vez de permanecer com um único ponto de vista.

Porém, psiquiatras e neurologistas têm como enfoque predominante o funcionamento biológico e neuroquímico do cérebro, e atuam na prescrição de medicações que visam regular o processamento neuroquímico da pessoa autista. Embora, a priori, este enfoque seja o principal em se tratando de autismo, não se pode negar que o ideal seria que houvesse um trabalho conjunto entre médico e psicoterapeuta, pois também é necessário lidar com as questões emocionais que tanto paciente como familiares enfrentam em decorrência do transtorno, bem como trabalhar para o desenvolvimento de estratégias de apoio e compreensão do quadro em suas nuances mais pessoais, como as que envolvem identidade, socialização e autoestima. Essa parte do processo pertence, sim, ao trabalho do psicólogo, mas este deve compreender o autismo para realmente poder ajudar.

Dessa forma, cria-se uma lacuna entre as duas extremidades: profissionais que tratam essencialmente da parte química e biológica dos transtornos mentais e profissionais que enxergam a síndrome apenas do ponto de vista psicoafetivo conforme padrões de neurodesenvolvimento típicos (ou seja, de pessoas sem autismo), desconhecendo e/ou desconsiderando os aspectos e limitações neuropsiquiátricas subjacentes.

É nessa lacuna que precisam estar os profissionais da psicologia que compreendam a natureza do autismo, propiciando um elo construtivo entre uma e outra perspectiva. Infelizmente, tais profissionais são escassos ainda, embora tenha crescido o número de psicólogos informados sobre o assunto a cada ano.

É bastante frequente o relato de pais que ouvem de psicólogos interpretações neurotípicas sobre o comportamento neuroatípico da criança e que insistem em aplicar estratégias que não são adequadas para aqueles no espectro, interpretando a falta de sucesso terapêutico como resistência da criança ou falta de colaboração (dos pais e/ou do paciente).

Também é comum que alguns dos comportamentos geralmente observados no autismo, tais como evitar o toque, ter dificuldades com o contato visual, apresentar isolamento social ou atos de autoagressão, sejam erroneamente interpretados como causados por ‘traumas’ psicoafetivos. Tal afirmação é incoerente com a própria natureza do transtorno, uma vez que a condição se desenvolva ainda durante a fase embrionária da gestação, antes que qualquer interação com o ambiente social ocorra. Além disso, alguns dos comportamentos observados no autismo são referências características a distúrbios neurológicos (tais como girar, andar na ponta dos pés, comportamento repetitivo, dificuldade de percepção do quente-frio, hipersensibilidade auditiva, etc.), conforme se falará mais a seguir. Caso a pessoa autista apresente traumas ou fobias, estas serão posteriores à instalação do quadro e comumente decorrentes da falta de diagnóstico precoce, que tenha impedido o indivíduo de receber o apoio necessário às suas necessidades especiais, de modo que a exposição a fatores estressores, especialmente no contexto social e escolar, tenha sido excessiva para as hipersensibilidades e limitações comuns ao quadro.

Imagine um professor de escola infantil insistindo em manter a criança num playground cheio e barulhento, onde as crianças se esbarram ou se batem a todo instante, ao mesmo tempo em que tenta fazer com que a criança deixe a brincadeira restrita e repetitiva de lado (que é sua única forma de escape da agressão sensorial do entorno e de autorregulação emocional no momento de vida em que se encontra), para seguir as novas atividades propostas à turma, afinal, é crença comum que crianças precisam de muitos estímulos e que devam quase que freneticamente se relacionar entre si, lidando com o choro desenfreado de pânico da criança – que não consegue dizer o que sente, num ambiente que lhe fere os ouvidos e passa por cima de suas dificuldades como um rolo compressor. Imagine que este professor aplique estratégias tais como ‘ignorar o choro para ver se passa’, ou insistir na mesma situação por meses, afinal, é crença comum entre educadores que “uma hora a criança acostuma”. Junte tudo isso e você terá um panorama claro de como um trauma ou fobia (social ou escolar) numa criança autista se instala, muitas vezes exacerbando sua tendência introvertida, uma vez que o contato social lhe tenha sido apresentado de forma tão penosa que só lhe resta ampliar sua ação de autoproteção, isolando-se mais em vez de expandir a socialização, especialmente porque, na infância, suas sensibilidades são maiores e suas estratégias de enfrentamento são menores, o que a deixa especialmente desprotegida e assustada.

Uma vez que a formação e experiência do psicólogo estejam embasadas no funcionamento de crianças típicas (sem autismo), são bastante comuns interpretações tais como achar que a criança esteja “ignorando” ou “testando” o adulto quando não responde ao ser chamada ou quando desobedece, desconhecendo o fato de que tais comportamentos são absolutamente comuns no autismo e têm a ver com problemas de processamento neurológico e falhas de compreensão da dinâmica social.

Outro exemplo é o psicólogo achar que a criança esteja “manipulando” as pessoas ou “querendo chamar a atenção” através de ‘birra’, enquanto falham em observar que a ‘birra’ nestas crianças – na maioria das vezes – não ocorre pelos mesmos motivos de uma criança típica, e sim por:

  • Sobrecarga sensorial – como ter sido exposta a barulho, cheiros, situações geradoras de desconforto físico, dentre outros.
  • Alterações na rotina, novidades repentinas – o que desestrutura seu cérebro rígido, sendo de difícil – quando não impossível – controle consciente do indivíduo, que, na maioria das vezes, não consegue evitar tal desregulação interna, especialmente durante a infância, quando a condição neurológica é mais imatura/precária e as funções do lobo frontal ainda não estão bem desenvolvidas, bem como as habilidades da Teoria da Mente.
  • Impedimento na realização de algum ritual – este consiste em comportamento repetitivo obsessivo, muitas vezes relacionado a hiperfocos, e ocorre porque há déficits na mesma área do cérebro citada acima (lobo frontal), responsável pelas funções executivas que, dentre outras coisas, regulam a necessidade de repetição das ações.

De acordo com Klin (2006), o prejuízo das funções executivas no autismo causa dificuldades no planejamento e manutenção de um objetivo na execução de uma tarefa, podendo também gerar déficits no aprendizado por meio de feedback e uma falta de inibição de respostas irrelevantes e ineficientes. As funções executivas no autismo apresentam um déficit relevante, pois há um prejuízo na capacidade atencional, na motivação, na memória, no planejamento e execução de uma tarefa. (Para saber mais sobre as funções do lobo frontal e prejuízos no autismo, clique aqui).

Ou seja, tais processos não estão submetidos à vontade e controle conscientes da criança (ou do adulto autista, lembrando que o autismo perdura para a vida adulta) como muitos profissionais imaginam, como precisaria ser o caso nas tentativas de manipulação e intenção de chamar a atenção que, inclusive necessitariam de melhor compreensão da perspectiva alheia, onde a criança autista costuma ter considerável dificuldade, uma vez que não disponha da mesma habilidade com a Teoria da Mente que uma criança não-autista. Além disso, a ‘birra’, cujo nome adequado seria ‘crise’ (termo derivado do inglês “meltdown”, comumente utilizado no autismo), não ocorre apenas quando a criança ‘quer’ alguma coisa (mas atenção aqui, pois também é preciso avaliar o que a criança quer e por qual motivo quer), mas também devido à sobrecarga sensorial, incapacidade de compreensão do discurso e perspectiva do outro (déficit na Teoria da Mente, que dificulta a negociação e explicação da situação à criança), desregulação das áreas do cérebro localizadas no lobo frontal responsáveis pelo controle de impulsos, reatividade emocional e flexibilização de parâmetros (que geram os rituais/obsessões), como já mencionadas anteriormente. O TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), por exemplo, pode ser desencadeado por lesão nas áreas frontais do cérebro, quer sejam inatas (genéticas, problemas na gravidez ou parto, etc.) ou adquiridas (acidentes, quedas, etc.), de forma que, muitas vezes, o transtorno se manifeste independentemente da presença de alguma questão emocional subjacente.

Por isso é fundamental a adequada compreensão do quadro do ponto de vista dos comportamentos que são causados por disfunção neurológica, para que se possa entender as reais limitações e possibilidades do paciente. É preciso cuidado com estereótipos e achismos acerca do que seja o autismo. Muitas vezes, o profissional descarta a possibilidade de autismo por não estar familiarizado com o conceito de espectro – o que o impede de reconhecer os sinais em casos mais leves – e por ter em mente uma imagem de autismo severo apenas, onde os comprometimentos são muito mais óbvios (como déficit cognitivo ou problemas claros de fala).

Forçar a criança a colaborar quando o cérebro dela não ‘compreende’ como fazê-lo é quase como querer forçar uma pessoa cadeirante a andar. Existem limitações biológicas que precisam ser levadas em consideração. As recomendações clássicas de psicólogos e educadores para eventos de ‘birras’ comuns da infância são: a) Não ceder; b) Deixar a criança chorar até que perceba que não vai ganhar o que quer com tal comportamento; c) Ignorar a birra para não reforçar o comportamento.

Com crianças no espectro, tais ações não somente são quase sempre impossíveis – quando não cruéis, pois a criança fica entregue ao próprio desespero sem encontrar meios de sair dele – como podem ser danosas. Isso porque o choro e agitação física se derivam de desregulações do sistema nervoso das quais a criança não tem controle, além do que a criança dificilmente é capaz de ‘perceber’ (lembrando que possuem falhas na Teoria da Mente) e ‘alterar’ seu comportamento como uma pessoa sem autismo faria.

Os pais enfrentam uma dura batalha para educar estas crianças e provavelmente já tentaram todas as abordagens comportamentais, inclusive as sugeridas para lidar com birras tradicionais da infância, muitas vezes por iniciativa própria – afinal, é comum que, num primeiro momento,  os pais imaginem que as crises possam tratar-se de birras típicas de crianças (inclusive porque é o que muitas pessoas dizem a eles que sejam), antes de começarem a perceber que existe ‘algo mais’ – ou por orientação dos próprios profissionais, frequentemente das áreas de educação ou psicologia, que também pensam tratar-se de birras típicas comuns à maioria das crianças. A criança, muitas vezes, não consegue parar a crise mesmo obtendo o que quer (embora a realização de algum comportamento repetitivo – ritualístico – que tenha desenvolvido costume acalmá-la). Os efeitos da crise podem causar um funcionamento alterado por dias após o evento, tais como alterações no sono, alimentação ou no controle dos esfíncteres (escape ou retenção de urina ou fezes), o que é especialmente comum em crianças mais novas (até por volta dos 6 anos), nos casos mais leves, ou nas que apresentem quadros mais severos (não havendo limite de idade).

Quando estes pais chegam ao consultório psicológico, muitas vezes estão no limite, à beira de um colapso emocional, geralmente apresentando sintomas depressivos e/ou ansiosos, dada a tensão e dificuldade de convívio com a criança (como se pisassem em ovos o tempo todo para evitarem as crises que, caso contrário, ocorreriam numa frequência absurda), a falta de apoio e entendimento do quadro, e a pressão de serem regularmente vítimas de julgamentos, dúvidas quanto à capacidade de serem bons pais, recriminações, cobranças e sugestões das pessoas no entorno que parecem nunca funcionar com seus filhos. Dentre estas pessoas estão familiares, amigos, professores, pessoas que presenciam as crises em locais públicos e mesmo profissionais com informação insuficiente sobre a condição.

Se, num momento fragilizado como esse, os pais são recebidos pelo profissional de psicologia com avaliações tradicionais tais como achar que a origem do comportamento da criança se deva a uma resposta emocional pelo que ‘captam’ dos pais, como ser ansiosa porque os pais parecem ansiosos, ‘manhosa ou mimada’ porque os pais ‘lhes fazem muitas vontades e não permitem que o filho se frustre’, apresentar ‘instabilidade emocional’ porque os pais parecem desestabilizados emocionalmente (certamente poderão estar mesmo, mas em resposta à situação de stress contínua que vêm vivendo!), esse profissional estará apenas insistindo em interpretações psicológicas provenientes de sua zona de conforto e conhecimento em relação a pessoas típicas (sem autismo), falhando seriamente em reconhecer traços de disfunções neuropsiquiátricas e em proceder com o encaminhamento do paciente para avaliação psiquiátrica (ou neurológica), mesmo porque é preciso conhecer o fato de que certos comportamentos só melhoram com medicação. Isso também é verdade para adultos autistas, que, muitas vezes, passam anos em terapias psicológicas sem sucesso e não têm sua suspeita de autismo validada.

Ou seja, o profissional de psicologia que insista em interpretações apressadas, menospreze as observações dos pais¹ e recomende estratégias comportamentais inadequadas, estará deixando o paciente e a família não somente sem apoio, como principalmente entregues ao próprio desespero. (¹ Estudos mostram que a mãe costuma ser a primeira pessoa a perceber sinais de autismo na criança e fóruns de discussão sobre autismo revelam que a mãe raramente recebe crédito dos profissionais por suas observações, mesmo que a maioria tenha tido seus filhos oficialmente diagnosticados depois.)

Por isso, convém exame detalhado da situação, com anamnese cuidadosa, consulta a profissionais de outras áreas (especialmente da psiquiatria e neurologia), pesquisa na literatura médica e conhecimento de escalas de auxílio na detecção do autismo tais como a ATA e a CARS (que podem ser aplicadas de maneira bastante simples em consultório), para somente então proceder com devolutivas e direcionamento do trabalho.

O caso do desenho “Nemo”

Houve um acontecimento recente que gerou muita repercussão na mídia (ocorrido em janeiro de 2019, para ler a respeito clique aqui), de uma mãe que pediu desesperadamente nas redes sociais para que a Netflix devolvesse ao menu que habitualmente aparecia na tela inicial o desenho “Nemo”, que havia deixado de ser exibido, pois este era o desenho preferido do seu filho com autismo, e mais do que isso, na verdade, pois tratava-se de seu hiperfoco obsessivo. O menino assistia este mesmo desenho todos os dias, muitas vezes no dia, há muitos meses, e a rigidez do processamento mental típico da condição autista não permitia que ele aceitasse outro desenho no lugar, com o detalhe de precisar ser acessado através da barra de menu que ele tinha costume, de modo que oferecer a ele um CD do desenho, por exemplo, não vinha funcionando para aplacar o desespero do garoto.

Houve muitos comentários que ilustram a dificuldade da população geral – e até mesmo de alguns profissionais, vários deles da área da educação e psicologia – de entenderem como o autismo funciona e que ocorre num espectro que varia para cada pessoa, o que nos dá uma pequena amostra do que mães de crianças com autismo passam, de como se sentem sozinhas e do que ouvem constantemente (inclusive das escolas). Dentre os comentários, estavam coisas do tipo: “Por que você não grava um DVD do Nemo pra ele?!”, “Seu filho precisa aprender que não é o centro do mundo”, “É filho único?”, “Precisa cortar esse mimo, senão…”, “Nossa, se eu fosse postar nas redes sociais cada desejo do meu filho!” e, ainda, “Você precisa ensinar o seu filho a se preparar para a realidade da vida”. Estes comentários fazem parte da psicologia popular geralmente direcionada à criação de filhos não autistas, e mostram desconhecimento, interpretação equivocada, julgamento e dificuldade de empatia para com a realidade do autismo. Sendo estes mesmos comentários uma constante na vida de mães com crianças no espectro do autismo, pode-se imaginar a pressão e reprovação a que estão permanentemente sujeitas. Não é a toa que tantas mães desse grupo tenham sua saúde mental piorada, com o surgimento de quadros intensos de ansiedade e depressão, afinal, como se já não bastassem os desafios do dia a dia no cuidado do filho com necessidades especiais, ainda precisam lidar com o ‘bombardeio’ vindo de fora.

Por fim, esta mãe acabou sendo ajudada por um rapaz que, dada sua capacidade de sensibilidade e empatia, encontrou um meio criativo de resolver o problema, gravando um DVD onde o menu de opções da Netflix aparecesse no topo. Este rapaz, mesmo sem ser da área de saúde mental, compreendeu a rigidez mental da pessoa autista e entendeu que a mudança no formato visual da tela era o que fazia a criança ter crises, que, segundo o relato da mãe, já vinham ocorrendo há muitos dias.

Dentre o público mais esclarecido (incluindo psiquiatras), houve uma profusão de elogios à nobre atitude do rapaz que ofereceu a ajuda, afinal, houve compreensão do fato de que a capacidade natural de flexibilização do pensamento presente em pessoas sem autismo, que tanto possibilitam o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento do mundo como ele é,  não é algo com que a pessoa autista possa facilmente contar. O mundo da pessoa no espectro do autismo – e, por consequência, de seus cuidadores – é bastante difícil e cheio de situações diárias que causam angústia, pânico e sofrimento. O desenho do Nemo foi apenas uma dessas situações. Crianças sem autismo têm muito mais vantagem em seus anos de formação, e têm uma quantidade muito menor de obstáculos a superar se comparadas às que estejam no espectro. Por isso, a ajuda desse rapaz foi tão importante, numa dimensão que pessoas sem autismo, ou cujos filhos não tenham autismo, não costumam conseguir imaginar. Foi um gesto humano, que aliviou o sofrimento diário dessa mãe e filho, sofrimento este que não era pequeno do ponto de vista autista, e não do ponto de vista de uma pessoa que não convive com o autismo. Longe de ‘mimar’ ou ‘satisfazer vontades’, o que essa mãe buscava ao postar sua aflição nas redes sociais era um pedido de socorro, uma tentativa de conseguir – para o garoto e para a família como um todo – um pouco de paz e um mínimo de normalidade no dia a dia.

É por isso que existem pessoas consideradas como tendo necessidades especiais. Estes não são ‘privilégios’, são auxílios mais do que merecidos na tentativa de compensar desvantagens físicas ou mentais que os outros não têm. Se enfrentar a vida já é difícil para todos, certamente é muito mais difícil nesses casos.

Por fim, vale lembrar que a regra de ouro no manejo do autismo é o controle de ansiedade, pois esta pode causar inflamação e morte de neurônios, que num cérebro que já apresenta déficits neurológicos, pode ser especialmente nocivo e reduzir as chances de que o próprio cérebro compense certas dificuldades dos anos iniciais da infância conforme amadurece, podendo causar, agravar ou ampliar possíveis comorbidades psiquiátricas. Para ler mais sobre isso, clique aqui.

Assim, voltamos à questão inicial do artigo: a necessidade de compreensão do quadro que precisa, sobretudo, estar presente dentro de um consultório de psicologia.

Afinal, a terapia psicológica pode ajudar?

Certamente.

Sendo o profissional de psicologia bem-informado quanto ao TEA, o acompanhamento psicológico pode ser bastante valioso, especialmente em determinados estágios da vida, como:

  • Na fase entre 3 e 5 anos, em média, a criança ainda não costuma ter disposição interna para frequentar uma terapia, e o trabalho pode ser mais voltado para orientação de pais e escola, quanto ao entendimento do quadro e adaptações necessárias para minimizar o sofrimento da criança e potencializar seu desenvolvimento, reduzindo as chances de instalações de fobias (de dificílima remoção depois, principalmente fobia social e escolar, muito frequentes em crianças com Asperger).
  • Em torno dos 8 anos, que é quando a criança com AAF/SA (Autismo de Alto Funcionamento/Síndrome de Asperger) começa a perceber-se como diferente dos colegas e passa a enfrentar angústias em seu convívio social. É possível que, nessa idade, a criança já esteja mais internamente disponível para engajar em terapia (variando muito caso a caso e jamais devendo a criança ser forçada a permanecer em terapia), embora o trabalho provavelmente não vá seguir moldes convencionais; poderão ser trabalhadas as dificuldades da escola e colegas em compreenderem – ou mesmo aceitarem – suas características especiais, bem como frequente orientação aos pais – ou mesmo apenas um trabalho com os pais e a escola caso a criança se recuse a ir à terapia; o terapeuta poderá visitar a escola para orientar os professores sobre como agir em relação à criança e oferecer dicas de apoio no contato com os colegas.
  • Na adolescência, que é uma fase naturalmente difícil para qualquer pessoa, e que, no caso do autista, tem como acréscimo as dificuldades da síndrome.
  • Em determinados momentos da vida adulta, como quando, muitas vezes por falta de apoio e conscientização nos anos anteriores de vida, questões acerca da própria identidade, vida profissional, relacionamentos, casamento e filhos podem tornar-se substancialmente mais complicadas para aqueles no espectro do autismo.

Adultos com a síndrome de Asperger muito comumente se sentem agudamente sobrecarregados e confusos, podendo desenvolver ou apresentar piora de transtornos psiquiátricos associados, como TOC, Transtorno Bipolar, Ansiedade Generalizada, Transtorno do Stress Pós-Traumático e Depressão Maior.

Cada nível de severidade do autismo irá requerer a colaboração de profissionais diferentes, com abordagens diferentes, para melhor desenvolver o potencial da criança – e do adulto. Quadros mais severos costumam ter o apoio de equipes multidisciplinares e tratam outras questões além das mais diretamente relacionadas ao que a psicoterapia costuma abordar, tais como problemas com a fala ou coordenação motora, por exemplo. Pessoas com Autismo de Alto Funcionamento ou Síndrome de Asperger, muitas vezes, têm somente o profissional de psicologia – e/ou um psiquiatra ou neurologista que as acompanhe – como fonte de apoio, e a não-obviedade dos sintomas pode fazer com que acabem mais frequentemente inseridas em processos terapêuticos cuja condição de autismo não seja reconhecida, e que sejam, portanto, inadequados.

O texto abaixo oferecerá mais especificações acerca do tema.


O conteúdo a seguir é a tradução livre de trechos do capítulo 14 (“Psychotherapy” – Psicoterapia) do livro The Complete Guide to Asperger’s Syndrome (O Guia Completo da Síndrome de Asperger), de Tony Attwood. (p. 328 – 337)


Psicoterapia

Por Tony Attwood

Tradução: Audrey Bueno

“Eles são estranhamente impenetráveis e difíceis de compreender. A vida emocional deles permanece um livro fechado.”

(Hans Asperger, 1944)

Há muitos tipos diferentes de psicoterapia que tem sido usados com crianças e adultos com a síndrome de Asperger, mas poucos estudos de caso publicados. Em minha opinião, a terapia tradicional psicanalítica tem pouco a oferecer a esses pacientes, uma opinião compartilhada por alguns psicoterapeutas (Jacobsen 2003, 2004). Contudo, há casos publicados que utilizaram psicoterapia analítica tradicional e modificada (Adamo 2004; Alvarez e Reid 1999; Pozzi 2003; Rhode e Klauber 2004; Youell 1999). A psicanálise detalhada da relação entre mãe e criança pode ser irrelevante para compreender a mente de uma criança com a síndrome de Asperger, e levar a mãe a desenvolver culpa considerável e tornar a criança bastante confusa. A síndrome de Asperger não é causada pela inabilidade da mãe em amar a criança e relacionar-se com o seu filho ou filha. Isso pode parecer óbvio mas, infelizmente, em alguns países, como a França, o conceito tradicional psicanalítico de autismo e síndrome de Asperger é o modelo teórico dominante e a base de tratamento.

Os métodos de análise usados em terapia tradicional analítica baseiam-se na concepção de desenvolvimento de crianças típicas, mas crianças com Asperger percebem e se relacionam com um mundo muito diferente. Em terapias psicanalíticas, a brincadeira da criança é analisada para explorar seus pensamentos internos. A brincadeira natural de crianças com Asperger é geralmente uma re-encenação ou “eco” da cena da história favorita da criança, e não é necessariamente uma metáfora de sua vida a que devam ser atribuídos significados projetivos. Ao usar testes projetivos, a criança com Asperger provavelmente oferecerá informações fatuais em vez de projeções do self. A criança estará simplesmente descrevendo o que vê. (Nota do tradutor: o que o autor quer dizer nesse parágrafo é que a brincadeira da criança com Asperger costuma descrever situações cotidianas reais ocorridas, com foco nos fatos e não na carga psicoafetiva; o brincar consiste, por exemplo, em classificar os diferentes tipos de pilhas e baterias que vê nos brinquedos, ou a forma com que uma porta de loja abre e fecha – se sobe ou desce, abre para a direita ou esquerda, se é deslizante, etc., ou o modo como um robô foi desmontado no desenho animado, sendo o foco no ‘funcionamento concreto’ das coisas, por exemplo, onde geralmente não há significado interno projetivo em termos de conteúdo emocional; a criança pode, ainda, apresentar ‘ecolalia’, fenômeno comum no autismo que consiste em repetir palavras ou frases ouvidas num desenho ou em algum outro lugar, muitas vezes sem função comunicativa e fora de contexto. Portanto, se a criança diz: “Você está liquidado”, pode simplesmente estar reproduzindo essa frase sem a intenção de ‘liquidar’ alguém ou sem conhecimento do que a frase signifique).

O perfil Rorschach de crianças com Asperger é consistente com o critério diagnóstico (Holaday, Moak e Shipley 2001). Há um baixo relato de conteúdo humano, movimento humano e cooperação, e indicações de ‘relações sociais empobrecidas ou pouco gratificantes’ e ‘inabilidade social’. As respostas são também significantemente diferentes dos dados normativos em relação à expressão ou vivência e da habilidade em estabelecer e manter intimidade e cumplicidade. O teste é sensível a algumas das características da síndrome de Asperger.

O Inventário de Personalidade Multifásico Minnesota¹ (segunda edição) foi administrado a adultos com a síndrome de Asperger, refletindo um perfil com características de personalidade tais como isolamento social, dificuldades interpessoais, humor depressivo e déficits de enfrentamento (Ozonoff et al. 2005a). O perfil de personalidade é consistente com as descrições clínicas e também inclui desconforto em situações sociais, reserva social e introversão, timidez e ansiedade social. O estudo também identificou limitações quanto ao insight e consciência de si mesmo (e dos outros) que seriam consistentes com o nosso modelo psicológico da síndrome de Asperger, especialmente em relação às habilidades de Teoria da Mente em atraso.

A psicoterapia pode ser de valor considerável ao pais para ajudá-los a compreender as reações psicológicas de ter um filho, filha ou parceiro com a síndrome de Asperger, e sua frustração em dizer “Eu não deveria ter que lhe dizer isso” (Jacobsen 2003). Esse comentário, geralmente dito em exasperação, provavelmente já teria sido dito muitas vezes a uma pessoa com a síndrome de Asperger e geralmente se deve ao não entendimento da natureza da síndrome.

Um pai ou companheiro pode precisar de insight por parte do psicoterapeuta sobre a mente da pessoa com Asperger para facilitar a aceitação e convívio com alguém que não se relaciona com os membros da família de forma convencional, e oferecer compreensão em relação às emoções e ajustes necessários. […]

Crianças e adultos com a síndrome de Asperger podem se beneficiar da psicoterapia, mas esta precisa estar embasada num bom entendimento da natureza da síndrome, especialmente na habilidade da pessoa em compreender e comunicar pensamentos e sentimentos, e no conceito de self (eu) em termos de autoimagem, autoestima e auto aceitação, baseados na história de vida de alguém com Asperger. Isso irá requerer do profissional o conhecimento atualizado das pesquisas em psicologia cognitiva sobre a síndrome de Asperger, especialmente quanto aos estudos de Teoria da Mente, funções executivas e pobre coerência central, ter lido experiencias autobiográficas e estar preparado para fazer alterações às psicoterapias convencionais. Com o passar do tempo, é possível que vejamos o desenvolvimento de uma perspectiva teórica completamente nova e psicoterapia baseada não nas habilidades, experiências e pensamentos de crianças típicas, mas sim no diferente perfil de habilidades, experiências e pensamentos de crianças com síndrome de Asperger.

O estabelecimento de uma relação positiva/empática entre o cliente e o psicoterapeuta é essencial, mas clientes com a síndrome de Asperger podem instantaneamente, e permanentemente, gostar ou não de outras pessoas, especialmente profissionais. Será preciso haver um cuidado especial quanto a identificar um psicoterapeuta que seja mais provável de ser aceito pela pessoa com Asperger. O psicoterapeuta precisará ter entendimento do perfil linguístico da pessoa com Asperger, incluindo dificuldades com os aspectos pragmáticos² da comunicação, especialmente os turnos normais de falar-ouvir e o saber quando e como interromper, e uma tendência a interpretações literais e a discurso pedante³.  O cliente com a síndrome de Asperger irá precisar de mais tempo para processar cognitivamente explicações, e se beneficiará de uma abordagem clara, estruturada e sistemática […]. Pode ajudar oferecer os pontos principais de cada sessão por escrito e revisar cada ponto na sessão seguinte. […]

Aprendendo sobre a mente um do outro

Um dos componentes da psicoterapia é que o psicoterapeuta tome conhecimento dos pensamentos internos do cliente. O entendimento e expressão de pensamentos internos, de si mesmos e dos outros, pode ser um problema considerável para a pessoa com Asperger. Liane Holliday Willey explica que “auto-análise não vem fácil para o Aspie (pessoa com Asperger), particularmente para os homens com a síndrome. Alguns de nós nunca chegam ao ponto onde podemos olhar para o interior e transportar para o exterior.” (Willey 2001, p. 87).

[…]

A psicoterapia convencional se dá através de conversação entre terapeuta e cliente numa interação face a face. Nós sabemos que o cliente com Asperger terá habilidade limitada para expressar pensamentos internos e emoções de forma eloquente usando o diálogo, e maiores dificuldades, em comparação a clientes típicos, em processar o discurso e as intenções do terapeuta decifrando dicas sociais e emocionais. Isso poderá tornar a interação terapêutica mais confusa e estressante em comparação a outros clientes. Observei que o cliente pode se sentir mais tranquilo e habilidoso em oferecer insight quanto aos seus pensamentos internos e experiências se solicitado a engajar na conversa terapêutica utilizando dois computadores interligados ou trocando e-mails. […]

Uma outra abordagem é usar a arte como meio de expressão, tal como desenhar um evento e usar balões de fala ou pensamento como vemos em gibis. O cliente pode preferir escolher música que precisamente expresse seu pensamento ou emoção ou, no caso de crianças, reproduzir/encenar uma cena de algum filme ou conto preferido que lembre algum evento ou emoção. Estas estratégias indiretas podem fornecer insight riquíssimo sobre o mundo interno da pessoa com a síndrome de Asperger.

Incidentes passados de injustiça, contra si mesmos ou outras pessoas, são difíceis para portadores de Asperger compreenderem e resolverem. Memórias de terem sofrido bullying, terem sido mal compreendidos ou interpretados, culpados ou traídos podem continuar invadindo seus pensamentos como uma experiência diária, muitos anos após a ocorrência do evento. A cena pode ser mentalmente repassada como tentativa em compreender os motivos dos envolvidos para que se determine quem é o culpado, para atingimento de compreensão e resolução. […] Quando há falta de insight intuitivo, o terapeuta pode oferecer explicação e informação. Os fantasmas do passado podem encontrar descanso através de explicação e informação de pensamentos e sentimentos que eram, até então, vagos e imprecisos.

O psicoterapeuta poderá não conseguir usar a transferência construtivamente como faz com outros clientes, mas pode tornar-se um mentor, alguém que compreende e oferece esclarecimentos, capacitando a pessoa com Asperger a articular melhor suas próprias perspectivas e intenções. O cliente com Asperger pode também se tornar mais consciente sobre como suas palavras e ações afetam os pensamentos dos outros.

Portanto, psicoterapia de longo prazo pode ajudar pessoas com a síndrome de Asperger a compreenderem eventos-chave em sua vida, e a lidarem com um mundo que nem sempre entende a perspectiva e intenções de alguém com a síndrome. O processo de determinar ‘de onde eu venho’, uma combinação do entendimento da natureza da síndrome, experiências prévias e como tais características afetaram o indivíduo, ajudarão num outro componente da psicoterapia, compreendendo ‘quem eu sou agora’ – o conceito de self (eu).

O conceito de self

Em algum estágio da infância, a pessoa com a síndrome de Asperger reconhece que seja diferente das outras crianças. No capítulo 1 houve uma descrição das quatro reações psicológicas para esse reconhecimento, nomeadamente depressão, fuga através da imaginação, arrogância e sobrevivência por imitação. A psicoterapia pode ajudar crianças ou adultos com Asperger a alcançarem uma visão realista de quem são e a reconhecerem seus pontos fortes mais do que suas fraquezas.

A pessoa com síndrome de Asperger pode ser muito autocrítica, um dos pontos que contribuem para a depressão clínica. Caroline, uma adolescente com Asperger, me disse que “A pior coisa sobre desapontar a si mesmo é que você nunca se perdoa totalmente”. A psicoterapia pode ajudar a reduzir a autodúvida e a autocrítica. A autoimagem negativa pode ser reduzida (o autor sugere o uso da Atividade de Atributos descrita no capítulo 15, que consiste basicamente em listas de qualidades e defeitos autopercebidos e percebidos pelos outros, e uma intersecção de análise entre elas) para ajudar a pessoa a identificar suas qualidades e perceber-se como alguém que é diferente e não necessariamente deficiente. […]

A reação psicológica de fuga através da imaginação pode tornar-se um problema quando o mundo de fantasia começa a adentrar a realidade. Fugir para um mundo imaginário pode ser uma reação compreensível por sentir-se alienado do mundo real, mas sob stress extremo isso poderia levar ao desenvolvimento de delírios e perda de contato com a realidade: uma psicose. A criança com a síndrome de Asperger pode tentar lidar com a vida imaginando ser um super-herói para conseguir poder e valor. A psicoterapia pode ajudar a criança a desenvolver um conceito de self que seja centrado e realista, novamente baseado na apreciação de características positivas de personalidade em vez de ficar presa às dificuldades de integração social e comparação com pares mais hábeis. Devido a uma história prévia de ter sido vítima de provocações, o adolescente com Asperger pode ter desenvolvido delírios persecutórios de que as intenções dos demais sejam invariavelmente ruins. Psicoterapia e orientação em habilidades relacionadas à Teoria da Mente podem ajudar a pessoa a compreender as intenções dos outros e a ser mais objetiva. A psicoterapia também pode encorajar o diálogo interno e oferecer uma percepção e interpretação mais objetivas das intenções alheias.

A pessoa com Asperger pode desenvolver um autoconceito compensatório de ser superior, o que faz com que os outros a percebam como arrogante. Novamente, a psicoterapia pode ajudar a pessoa a atingir uma compreensão realista de suas qualidades e dos atributos das outras pessoas. A terapia precisará incluir insight sobre como tal atitude afeta os relacionamentos e a habilidade de fazer e manter amigos, bem como o valor de admitir ter cometido um erro, e evitar nutrir sentimentos de raiva por aqueles que não atendem suas altas expectativas.

Atividades terapêuticas para auto identidade

O primeiro estágio em auto identidade é para que a pessoa entenda a natureza da síndrome de Asperger e quais características associadas à síndrome são expressas em seu perfil de habilidades e personalidade. O segundo estágio é usar atividades semi-projetivas de completar frases, tais como: ‘Eu sou…; Eu às vezes…; Eu sinto… quando…’, etc., para possibilitar ao terapeuta um maior entendimento da auto-representação da pessoa.  Observei que descrições da própria identidade geralmente incluem baixa autoestima quanto a atributos físicos4 e sociais, mas elevada opinião quanto às habilidades intelectuais.

Quando pedimos a crianças e adultos com a síndrome de Asperger para descreverem a si mesmos, a tendência é que definam sua personalidade em termos do que gostam de fazer ou de colecionar, mas não em relação à sua rede social de família ou amigos (Lee e Hobson 1998). […]

Ao conversar com crianças com Asperger sobre seu interesse especial, o ouvinte pode ficar perplexo quanto à profundidade de conhecimento e habilidade da criança em entender e desenvolver seu próprio sistema classificatório e de categorização para dado interesse. Contudo, isto se opõe em absoluto contraste à sua imaturidade quanto à catalogação natural de pessoas em relação à descrição de caráter e personalidade. A criança ou adulto com Asperger pode ser capaz de categorizar objetos e fatos de acordo com uma estrutura lógica, mas ter considerável dificuldade em desenvolver uma estrutura para pessoas.

[…]

O terceiro estágio é para desenvolver vocabulário e compreensão de caracterização e personalidades. Isso pode ajudar a pessoa com Asperger a entender a personalidade dos outros e eventualmente a sua própria. […]

Adultos com Asperger podem se beneficiar da leitura de autobiografias de mulheres e homens com a síndrome para se identificarem com experiências e emoções similares. […]

Um estudo sobre o temperamento e caráter de adultos com síndrome de Asperger identificou uma tendência em terem personalidade ansiosa e ‘obsessiva’, e em serem passivos, dependentes e explosivos (Soderstrom, Rastam e Gillberg 2002).

[…]

Dois dos mais importantes objetivos na vida e em psicoterapia são entender e aceitar quem você é. Algumas crianças e adultos com síndrome de Asperger parecem ter alcançado isso sem terapia formal.

[…]

Em sua autobiografia, Donna Williams explicou que “parecia que a ‘normalidade’ das outras pessoas era uma estrada para a minha insanidade” (Williams 1998, p.54). A melhor psicoterapia pode ser aquela oferecida por pessoas com experiência pessoal com a síndrome de Asperger e que tenham atingido auto aceitação. Nita Jackson, uma jovem com Asperger, diz às pessoas com a síndrome que:

Você tem que se aceitar por quem você é – por mais difícil que isso possa ser. Estar em negação irá apenas atrapalhar você. Reconheça sua síndrome, pesquise a respeito, e lembre-se que qualquer pessoa que seja cruel com você por causa de sua diferença não é alguém que valha a pena para começar. É mais fácil dizer que fazer, eu sei – eu mesma ainda não encerrei completamente o processo! Aceitar-se, portanto, é a chave para o sucesso pessoal … E, o mais importante, seja verdadeiro consigo mesmo, porque, no fim das contas, você tem somente a si mesmo para depender. (N. Jackson 2002, pp. 16-17)

 


Notas da Tradutora:

¹ Em inglês, o título original é Minnesota Multiphasic Personality Inventory, abreviado como MMPI.

² Os aspectos pragmáticos na comunicação se referem à habilidade de diálogo social que faz com sejamos percebidos como corteses, empáticos, respeitosos e atentos aos pontos sensíveis de uma conversa. Na pragmática, incluem-se o bate-papo social superficial comum em contatos breves e com pessoas de menor intimidade e frases referentes a convenções sociais tais como ‘bom dia, bom fim de semana, etc.’. Eufemismos, que são bons exemplos de habilidade pragmática, não tendem a ser muito utilizados por pessoas com a síndrome de Asperger, que costumam fazer uso de uma abordagem direta e fiel aos fatos – “verdade acima de tudo”.

³ Discurso pedante é um termo considerado pejorativo, usado para descrever uma fala que ostenta erudição, podendo soar arrogante; a pessoa com discurso pedante pode corrigir os erros gramaticais dos outros e falar de forma excessivamente formal. Etimologicamente, ‘pedante’ teria se originado na língua italiana, significando inicialmente “pessoa que trabalha minuciosamente”.

Possivelmente, a baixa autoestima em relação a atributos físicos é mais forte na amostra de pacientes do autor do livro do que seria no Brasil, por questões culturais, pois esportes são relacionados à expressão de status social em alguns países.

 

 

 

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2 comentários sobre “Psicoterapia em Pacientes com a Síndrome de Asperger

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