A síndrome de Asperger ainda é um assunto relativamente recente no meio médico-científico. Porém, mais recente ainda é o conhecimento que se tem acerca da síndrome de Asperger em mulheres. Por isso, muito do que se sabe até o momento, em se tratando das mulheres, é derivado de evidência anedótica, ou seja, a maioria massiva dos dados não foi comprovada nos moldes científicos vigentes até a presente data.
No entanto, é preciso considerar que a evidência anedótica geralmente toma corpo a partir do momento em que um número considerável de pessoas passa a experimentar um determinado fenômeno em comum, o que faz com que seus achados se tornem significativos para a compreensão de certos aspectos de uma dada conjuntura, especialmente quando são, por hora, a única referência sobre o assunto.
Se o conhecimento de Asperger em mulheres é escasso e limitado, ainda mais o é a questão da maternidade em mulheres com a síndrome de Asperger, onde pouco ou nada se encontra a respeito na literatura sobre a síndrome. A não comprovação científica das informações a seguir nos deixa dúvida quanto a dados estatísticos, ou seja, por hora, não é possível conhecer a incidência de determinado fenômeno na população feminina com síndrome de Asperger, e certamente o conteúdo desse post não será verdade para todas as mulheres com a síndrome, mas muitos relatos nos mostram que será verdade para uma boa parte delas.
Fala-se muito sobre maternidade neurotípica (que é a vivida por mulheres com funcionamento neurológico típico, comum), como se os padrões por ela determinados fossem a única forma de expressão maternal plausível. No entanto, mesmo elas estão sujeitas à pressão cultural proveniente do atual culto à maternidade e à infância, e à influência de uma cultura patriarcal que sempre monitorou e exigiu da mulher uma posição de total devoção santificada, onde os anseios, angústias e necessidades femininas permaneceram sempre em segundo plano.
Dentro desse molde, o controle sobre a mulher certamente se estendeu para a maternidade, continuando a ditar como as mulheres deveriam pensar e agir, lhes impondo um ideal de perfeição tão inalcançável quanto irreal. Numa sociedade tão normativa como a nossa, tudo o que fuja à regra, ao padrão pré-concebido de como a maternidade deva ser, é rapidamente recebido com críticas e não-aceitação. Se a mulher neurotípica já enfrenta uma carga pesada de cobrança social pelos tantos papéis e expectativas que a sociedade deposita sobre seus ombros diariamente, mais pesada ainda é essa carga para a mulher neurodiversa, cujas dificuldades e potencialidades serão divergentes do que geralmente se espera, e o não conhecimento dessas variações se manifestará em sentimentos de culpa, inadequação e confusão ainda mais intensos dos que os vivenciados na maternidade convencional, que passam a acompanhar o dia a dia dessas mulheres à medida em que suas experiências não encontrem eco em comparação à maioria das outras mães, ou dos papeis que representam.
Um aspecto bastante distinto na forma com que mulheres com Asperger e mulheres neurotípicas vivenciam a maternidade é a menor propensão das primeiras à ilusão, uma vez que pessoas com a síndrome de Asperger tendam a um estilo de pensamento mais lógico e realista, que naturalmente questiona o status quo (o modo como as coisas são), observando em maior profundidade as contradições existentes e se identificando menos com padrões sociais. Mentes analíticas, tão comuns no perfil Asperger, compartilham similaridades com a forma franca de pensar o mundo que muitos filósofos, cientistas e intelectuais difundiram ao longo da história, investigando os fenômenos humanos sob uma ótica mais racional e menos romantizada.
Mulheres com Asperger vivem a contradição da maternidade, comum a todas as mães, neurotípicas ou não, com intensidade ainda maior, pois se por um lado amam imensamente seus filhos, por outro sentem a carga de criá-los com especial opressão, uma vez que crianças põem à prova a resistência quanto às sensibilidades e dificuldades comuns do autismo, tais como lidar com o barulho, a constante interação social (que inclui ser chamada ou vivenciar o contato físico a todo instante, ter sua linha de pensamento e hiperfocos frequentemente interrompidos, a conversa ininterrupta, o maior fluxo de visitas, ter que lidar com a escola, eventos comemorativos e com a vida social aumentada) a desorganização e imprevisibilidade que a vida com crianças pequenas gera, o acúmulo de tarefas de ordem prática que consomem a energia mental em excesso para que sejam executadas (devido à disfunção executiva, comum no autismo – para saber mais a respeito, clique aqui) e o aumento de expectativas e cobranças sociais. Mulheres com Asperger podem ser excelentes mães, mas se esforçam sobremaneira para darem conta desse tipo de cotidiano e muitas desenvolvem transtornos de ansiedade e depressão por estarem sempre trabalhando acima de suas forças e pela auto cobrança de perfeição em relação ao seu papel. Por isso, se mães em geral já precisam de apoio, afinal, a maternidade não é uma tarefa que possa ser realizada solo com tranquilidade, mães com Asperger precisam ainda mais, pois lhes é vital ter um tempo para si mesmas para que possam recuperar as forças e se autorregular sensorialmente.
Um dos materiais mais conhecidos atualmente sobre a síndrome de Asperger em mulheres é o livro Aspergirls, de Rudy Simone. Para escrever o livro, Rudy contou não somente com sua própria experiência de vida, sendo uma mulher e mãe com síndrome de Asperger, como também com a pesquisa feita entre as muitas mulheres com a síndrome que povoam seu livro com trechos de narrações. Apesar do caráter não-científico, a obra foi reconhecida e recomendada por especialistas no assunto, como a Dra. Michelle Garnett, PhD, psicóloga clínica e fundadora do Instituto Minds and Hearts, na Austrália, onde o professor Tony Attwood, um dos mais lidos autores sobre Asperger da atualidade, é presidente, e Shana Nichols, PhD, psicóloga, pesquisadora e diretora do ASPIRE Center for Learning and Development, em Long Island, NY, e autora de dois livros sobre a síndrome. O psiquiatra brasileiro Dr. Walter Camargos, em seu livro “Síndrome de Asperger e Outros Transtornos do Espectro do Autismo de Alto Funcionamento” também recomenda o livro “Aspergirls”. A Autism Society of Ohio diz que o livro é “leitura essencial” para mulheres que tenham a síndrome, bem como para os parceiros e familiares dessas mulheres, além de ser uma importante referência para os que estejam acadêmica ou profissionalmente interessados em conhecer mais sobre a síndrome de Asperger em mulheres.
A seguir, está a tradução livre de trechos do livro Aspergirls, referentes ao capítulo 13 (“Having Children” – “Ter Filhos”), que fala sobre os desafios da maternidade para mulheres no espectro.
Tradução de Audrey Bueno
TER FILHOS
(capítulo 13, p. 137 – 141)
Algumas de nós querem a companhia e amor de uma família, enquanto outras vivem com medo disso. Se nós mal podemos tomar conta de nós mesmas, como poderemos ser responsáveis por outro ser humano? Ter filhos nunca é algo em que se entre de forma suave por uma mulher, tendo Asperger ou não. Mas quando se tem, todos os percalços referentes à maternidade são multiplicados. Ter filhos significa dizer adeus à paz, calma e solidão, nossas coisas preferidas. Há funções sociais que teremos que atender, desde eventos escolares e amiguinhos dos filhos e reuniões de pais. Esperarão de nós que sejamos cuidadoras; que sejamos adultas maduras que tomem decisões maduras, que sejamos altruístas; todas coisas com as quais podemos ter considerável dificuldade. Nós não nos pareceremos com a maioria das outras mães, não agiremos como a maioria delas e não nos sentiremos particularmente maternais. O próprio nome “mãe” já é algo com o qual nos debateremos, por denotar uma imagem padrão de mulher que não se encaixa com a nossa.
Eu sempre disse que todas aquelas imagens de infância com ursinhos de pelúcia e balõezinhos que vemos em todo lugar, desde papeis de parede até anúncios, deveriam ser substituídas por urina, excremento, vômito e sangue, pois é disso que se trata dar à luz um outro ser humano. Não foi bonito, não foi divertido, e ter um bebê mexeu com cada questão sensorial, social e de controle que eu já tive na vida. Além disso, eu era uma pessoa muito centrada em mim mesma, e ter que subjugar minhas próprias necessidades para colocar as de outra pessoa antes das minhas foi algo que não gostei. Numa ocasião, minha filha e eu estávamos num trem, indo da Califórnia para New York, quando ela tinha apenas dois anos de idade. Ela estava brincando com um garoto e a avó do menino, olhando nossos dois querubins, perguntou retoricamente, “Você não ama ser mãe?”, e eu honesta e secamente respondi, “Não.” Por um momento, a mulher expressou um olhar de profundo horror, ao mesmo tempo em que deslizou para longe de mim, para um assento perto da janela, de onde me olhava da maior distância possível. Claramente, ela havia me colocado na categoria de serial killer. Eu ri comigo mesma, e me pus a pensar na habilidade que algumas pessoas têm de mentir para si mesmas.
Ela não me perguntou se eu amava minha filha. Se ela o tivesse feito, eu teria respondido que sim. Era ser mãe que eu não gostava, pois achava a maternidade absurdamente desgastante. Do momento em que minha filha saiu de mim, berrando, apertando minha carne, quebrando a calma do meu pequeno apartamento em San Francisco, enchendo-o com cheiros horríveis, meu bebê era o pior pesadelo de uma mulher com Asperger. Eu rio enquanto escrevo isso, porque minha filha sabe o quanto a amo, e conhecendo minhas sensibilidades sensoriais, ela hoje é rápida em abaixar a música ou em silenciar os cachorros enquanto escrevo. Mas quando ela era um bebê, eu não podia sequer assistir um filme sem que ela estivesse chorando ou gritando […].
Num estranho capricho do destino, minha filha não é autista, mas era um bebê muito difícil de segurar. Ela era a única pessoa que eu realmente queria abraçar, mas ela me empurrava, e quando o fazia, meu apego por ela diminuía. Me tornei mecânica quando aos cuidados diários com ela. Erroneamente, achei que ela não precisava de mim e que nem mesmo me amava. Pensei que o pai dela, que nessa época já havia se separado de mim, pudesse ser mais amado por ela. Por um tempo, eu a deixei sob os cuidados dele, até que meus sentimentos profundos de conexão com ela retornaram. Quando isso aconteceu, foi de forma muito repentina e poderosa. Ela novamente veio morar comigo.
[…]
Quando ela retornou aos meus cuidados, eu era, mais uma vez, uma mãe devotada e boa cuidadora. Apesar das excentricidades, minha necessidade de rituais e rotina significavam que as coisas fossem relativamente conservadoras, seguras e previsíveis em nossa casa. […] Eu gostava de ser mãe solteira mais do que de ser casada, porque eu não tinha que dividir o controle com ninguém.
[…]
Apesar de dar muito duro na criação dela, eu sempre tinha a sensação de que o que eu estava fazendo nunca era o suficiente. Antes de me conhecer melhor através do diagnóstico, minha filha teve que testemunhar minhas muitas transformações. Enquanto eu tentava me entender, ela teve que seguir a jornada comigo, mesmo porque minha caminhada espiritual geralmente tomava forma física. Ela já tinha visitado ou morado em 14 países aos 14 anos. As outras mães tinham mais dinheiro, mais paciência, mais estabilidade, e nunca pareciam tão estressadas quanto eu. Elas falavam umas com as outras nos playgrounds, se encontravam para tomar um café. Eu nunca era chamada.
[…]
Nossos desafios com os filhos não terminam quando se tornam adultos. Eles ainda conseguem pressionar nossos botões autistas e serem algumas das pessoas que mais nos demandam na vida. Mesmo sabendo que temos autismo, eles ainda querem que sejamos pais e que satisfaçamos suas necessidades.
A dicotomia entre ser emocionalmente imatura ao mesmo tempo em que se é intelectualmente desenvolvida; em ser lógica e regrada e ao mesmo tempo ter disfunção executiva, é algo de difícil entendimento para os outros. Podem suspeitar que sejamos mães ruins […] enquanto não percebem que tal suspeita não se justifica.
[…]
CONSELHO AOS PAIS (de mulheres com Asperger)
Para aqueles de vocês que se preocupam com os netos, não façam isso. Nós, mulheres com Asperger, podemos ser ótimas mães, ainda que pouco ortodoxas. […]
Não pressionem sua filha com Asperger a se casar ou ter filhos se ela não quiser. Nós podemos nunca ter conseguido nutrir e nós mesmas e talvez seja preciso que façamos muito isso antes de podermos nos devotar a nutrir outra pessoa. Nós podemos simplesmente não querer essas coisas, ponto final. E há muito em jogo para se entrar na maternidade ou casamento com o coração pela metade.

Rudy Simone (author)
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