Hans Asperger – Um pouco da história e mais além

A palavra síndrome se refere a um conjunto de sinais e sintomas, e não a uma única coisa. Portanto, são necessários diversos sinais para que uma síndrome se caracterize. Embora quadros de autismo apresentem muitas variações, existem alguns sintomas que são considerados centrais para o diagnóstico do espectro autista. Dentre eles destacam-se: a tendência ao isolamento/retraimento/dificuldade de interação com o grupo e o comportamento repetitivo.

Até 2012, a síndrome de Asperger era classificada nos manuais médicos como uma condição à parte ao autismo. A partir de 2013, após a última revisão do DSM – manual médico internacional usado como referência em muitos países – , a síndrome passou a ser considerada como pertencente ao espectro autista por compartilhar algumas de suas principais características, sendo incorporada ao leque de descrições do autismo. Embora alguns manuais médicos, como o CID – manual mais usado no Brasil – permaneçam inalterados, descrevendo a síndrome de Asperger como uma condição à parte, devido às suas peculiaridades, a ideia de que ela faça parte do espectro autista é amplamente difundida e aceita, inclusive pelos próprios portadores da síndrome.

A síndrome de Asperger tem esse nome devido ao médico psiquiatra e pesquisador austríaco Johann “Hans” Friedrich Karl Asperger , mais comumente conhecido como Hans Asperger, pioneiro na identificação e classificação das diversas características da síndrome. Embora seus primeiros achados datem da década de 40, a síndrome só passou a ser, de fato, difundida na área médica e, consequentemente, na população, por volta da década de 90.

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Dr. Hans Asperger – Fonte da Imagem

Nesse quadro que o Dr. Hans Asperger observou, embora houvesse um grupo de características similares ao que hoje chamamos de autismo clássico (o tipo de autismo mais conhecido pela população, cuja manifestação é mais severa), havia outras várias características que diferiam completamente do quadro clássico, como, por exemplo, não ter nenhum prejuízo intelectual e, em muitos casos, ter inclusive inteligência acima da média, menor prejuízo no contato social e desenvolvimento normal da fala.
Hans Asperger observou em seus jovens pacientes que a maturidade social se desenvolvia mais tardiamente e alguns aspectos de suas habilidades sociais permaneciam atípicos ao longo da vida, tinham dificuldade para fazer amizades e eram muitas vezes alvo de bullying dos colegas, apresentavam dificuldades no controle das emoções e tendência a intelectualizar sentimentos, a empatia não era tão desenvolvida quanto seria o esperado considerando a idade e habilidade intelectual; apresentavam preocupação egocêntrica com um assunto de interesse que ocupava boa parte de seu tempo e pensamentos; algumas dessas crianças tinham problemas para manter a atenção em aula e apresentavam algumas dificuldades de aprendizado, independentemente do nível intelectual; requeriam mais assistência quanto à própria autonomia e habilidades organizacionais do que seria de se esperar para a idade, muitas apresentavam algum grau de inabilidade motora (no andar, correr, pegar uma bola, vestir-se, despir-se, caligrafia ou derrubar muito as coisas, por exemplo) e eram especialmente sensíveis a certos sons, cheiros, texturas e toque.

Embora a síndrome de Asperger seja considerada como pertencente à extremidade leve do espectro do autismo, a síndrome tem também seu próprio espectro, o que significa que pessoas que recebam um mesmo diagnóstico da síndrome podem apresentar diferentes graus de dificuldades, ou seja, embora a síndrome se enquadre no grau leve em comparação às outras formas de autismo, existe uma variação entre os próprios indivíduos com Asperger, em que um pode apresentar dificuldades um pouco maiores ou menores em relação ao outro. O fator QI também exerce impacto significativo em como a síndrome se manifesta, e tudo isso torna o diagnóstico ainda mais complexo. É sabido que quanto maior o QI, menor a manifestação severa do autismo.

O psiquiatra Walter Camargos descreve:

“Como as características das crianças com Síndrome de Asperger são muito variáveis, temos um subdiagnóstico dessa afecção e a rotulação dessas crianças como “diferentes”, “excêntricas”, “petulantes”, “com dificuldade de atenção”, etc. Muitas vezes, encontramos barreiras no diagnóstico, principalmente nas crianças com QI elevado, por ser uma condição pouco conhecida pela sociedade, o que gera dificuldade de compreensão dos pais e escola, afinal, apesar de serem crianças inteligentes, possuem interesses restritos e baixa capacidade de execução de papéis sociais, que devem ser despertados e treinados ao longo da vida.”

Um engano comum é associar o fato do quadro ser leve e, muitas vezes, não perceptível em sua profundidade, à ideia de que não seja “nada demais”. Essa não obviedade da síndrome, não raro, leva a escola e os pais a deixarem de prestar a assistência necessária à criança. Muitas coisas que não são facilmente observáveis têm potencial para causar grandes impactos. Como analogia, podemos pensar na eletricidade. Se olharmos para uma tomada, nada veremos, mas se pusermos o dedo lá, o resultado será bem diferente. Outra analogia seriam os vírus: tão invisíveis quanto perigosos.

É importante ter consciência de que um transtorno como o autismo tem potencial para trazer comprometimentos significativos e causar dificuldades importantes à vida dos afetados, que podem, a princípio, especialmente na infância, ser “silenciosas, invisíveis”, como acontece nos quadros agudos de ansiedade, depressão e isolamento social, tão comuns ao autista, até que tais dificuldades aumentem e sejam percebidas somente quando a criança, ou mesmo pré-adolescente, não vai bem na escola – o que nem sempre é o caso, uma vez que muitas crianças com a síndrome apresentam inteligência acima da média, o que lhes garante algum sucesso escolar – , quando os problemas de interação social entre seus pares se tornam evidentes ou quando a pessoa, já adulta, falha nos aspectos tidos como essenciais ao funcionamento em nossa sociedade, como completar os estudos, manter um emprego, expressar-se socialmente de forma adequada, ter resiliência/capacidade para tolerar frustração, compartilhar interesses comuns em ambientes coletivos, participar de eventos sociais, desenvolver relacionamentos interpessoais ou cumprir os mais diversos papéis sociais que nos são impostos no decorrer da vida.

“Além disso, outro fator que pode mascarar a síndrome, e que é comum principalmente nas crianças com Asperger que tenham QI acima da média, é que podem desenvolver uma persona, que é uma personalidade social geralmente muito diferente da personalidade verdadeira, mesmo desde muito novas, que camufle muitos de seus déficits e dificuldades”. (Attwood, 2015)

Por isso, identificar o transtorno precocemente pode fazer uma enorme diferença no funcionamento da pessoa com síndrome de Asperger, pois um acompanhamento terapêutico adequado, auxílio familiar e escolar, podem minimizar e compensar significativamente algumas das dificuldades existentes, contribuindo para um futuro mais ajustado, produtivo e feliz.

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Crianças com síndrome de Asperger não compreendem bem a dinâmica das relações sociais, tendem a se isolar, apresentam interesses específicos e restritos, relutam em receber explicações ou permitir que as outras crianças interfiram em sua brincadeira, encontrando grande dificuldade em compartilhar. Estas crianças apresentam comportamentos repetitivos e ritualísticos que lembram o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), e a impossibilidade de execução desses rituais (popularmente chamados de “manias”) pode gerar explosões emocionais atípicas, semelhantes às birras, embora no autismo essas birras durem mais tempo e sejam mais intensas, além de desestruturar o indivíduo internamente, de modo que os efeitos desses picos de stress sejam sentidos por dias após a situação de conflito, desregulando sono, apetite e humor.  A aplicação dos métodos disciplinares usuais para a extinção do comportamento é geralmente ineficaz e pode, na verdade, agravar o problema. Em casos de hiperestimulação do ambiente, a criança pode descompensar-se internamente, entrando em estados alterados de consciência, alienando-se como forma de se recompor.

Muitas vezes, essas crianças podem parecer egoístas, sem qualquer habilidade de empatia ou egocêntricas, mas essa é uma visão errônea. O fato é que essas crianças têm dificuldade em demonstrar seus sentimentos e interpretar os sentimentos dos outros. Conhecer suas peculiaridades é importante não somente para o diagnóstico apropriado, mas também para estabelecermos metas realistas e ações que visem um convívio social e desenvolvimento mais adequado, além de contribuir para um menor sofrimento socioemocional.

Crianças no espectro do autismo têm dificuldade de visão empática, que é a habilidade natural que pessoas sem o transtorno têm de se colocar no lugar do outro, e isso, muitas vezes, causa comportamentos que, em nossa sociedade, são percebidos como ofensivos, gerando rótulos morais injustos para descrever as pessoas com a síndrome, pois tais comportamentos não são intencionais, e sim resultantes de dificuldades neurológicas, uma vez que as áreas do cérebro ativadas frente ao contato social em pessoas sem o distúrbio são diferentes das que são ativadas em pessoas com a síndrome e, portanto, conexões diferentes se formam, enquanto outras deixam de ocorrer. No longo caminho até a maturidade, muitos desses indivíduos poderão aprender a desenvolver um grau de empatia bastante satisfatório, mas precisarão de amparo, acolhimento e compreensão, especialmente durante a infância, pois haverá sempre um déficit nessa esfera em relação aos seus pares sem o transtorno.

No entanto, o funcionamento de pessoas com Asperger nunca é algo totalmente compreensível, uniforme, e a natureza da síndrome ainda não é plenamente conhecida. Existem sempre contradições no funcionamento dessas pessoas, como existem em todos nós, aliás, mas em pessoas com a síndrome, tais contradições são mais marcadas e nos confundem mais. Por exemplo, a criança com Asperger pode ser extremamente sensível a alguns tipos de sons, ouvindo inclusive frequências ou barulhos que uma pessoa sem a síndrome dificilmente ouviria, e, ao mesmo, ser completamente indiferente a outros sons que esperaríamos que as incomodassem. Pessoas com Asperger têm dificuldade de empatia pessoal, mas, ao mesmo tempo, têm compaixão admirável pelo sofrimento físico de alguém e podem ficar extremamente descompensadas, ansiosas e deprimidas ao ver imagens de pessoas ou animais vítimas de catástrofes naturais ou fome, muitas vezes com uma sensibilidade que pessoas neurotípicas (sem a síndrome) não têm.

Mesmo compartilhando um diagnóstico, não há duas crianças no espectro do autismo que sejam iguais. Além da ampla gama de variação de características, há também fatores biopsicossociais que interferem na forma como a síndrome se manifesta. Temperamento e personalidade continuam sendo marcadores individuais de funcionamento, independentemente da existência de uma síndrome.

 

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