Síndrome de Asperger (SA) ou Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN): qual o diagnóstico correto?

Relógio X Prato

Por Audrey Bueno

Graduada em psicologia e tradutora de artigos nas áreas de neurociências, psicologia e psiquiatria.

É comum haver considerável confusão entre as duas condições, pois há diversos traços comportamentais similares, ou seja, são transtornos com algumas sobreposições de sintomas, o que, num primeiro olhar, pode fazer com que uma pessoa seja diagnosticada com a síndrome de Asperger (SA) enquanto, na verdade, sua real condição é o Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN), ou vice-versa. A saber, a SA é um transtorno de base neurobiológica, inserido no espectro do autismo, enquanto o TPN é considerado um transtorno de personalidade. A diferença principal entre um transtorno neurobiológico e um transtorno de personalidade está na influência das ocorrências de vida ou capacidade de controle pessoal sobre as características do transtorno, que são maiores quando se trata de um transtorno de personalidade. 

Isso não significa que a pessoa com um transtorno de personalidade escolha plenamente ser como é, afinal, embora transtornos de personalidade sejam geralmente atribuídos às escolhas conscientes que o sujeito faz, há, em muitos casos – embora não todos – a influência de eventos na história de vida das quais o sujeito não tem culpa, além de maior influência da biologia na constituição da personalidade do ser humano do que se costuma supor, conforme apontam alguns estudos sobre a genética do comportamento. Desse modo, significa apenas que a pessoa com um transtorno de personalidade pode ter mais condições de agir conscientemente sobre sua condição, seja aceitando suas tendências ou lutando contra elas. O mesmo não ocorre com a pessoa autista, por exemplo, que tem uma determinação genética para seus comportamentos muito mais acentuada, o que também não significa que ela não tenha controle algum sobre suas ações, apesar do fato de que este controle diminui quanto mais severa for a expressão do autismo na pessoa. Isso também não significa que a pessoa na extremidade mais leve do autismo tenha controle pleno do próprio comportamento! Em comparação numa escala de 1 a 10, sendo 1 = controle nenhum e 10  = total controle, poderíamos supor, apenas a título de melhor ilustrar o descrito imaginar o seguinte cenário:

  • a pessoa sem qualquer transtorno teria uma capacidade de controle do próprio comportamento num nível entre 9 e 10.
  • a pessoa com transtorno de personalidade sem uma condição neurobiológica associada teria uma capacidade de controle do próprio comportamento entre os níveis 6 a 8, dependendo do transtorno.
  • a presença de uma condição neurobiológica, independentemente de haver ou não transtorno de personalidade associado, sugeriria uma capacidade de controle do próprio comportamento entre os níveis 1 e 5, sendo o nível de controle menor quanto mais grave for a expressão da condição (por exemplo, nível 1-2 no autismo severo e nível 4-5 no autismo leve).

É importante esclarecer que a classificação acima, acerca do controle sobre o próprio comportamento, é apenas uma suposição bastante superficial, já não apenas não é possível obter esse tipo de dado de forma precisa em se tratando do comportamento humano, como também não há como prever as muitas variáveis possíveis em cada caso, tais como: uso de medicação, efeitos colaterais X resposta satisfatória ao medicamento, situações e acontecimentos na vida, nível de apoio existente, comportamentos de terceiros, fatores genéticos que podem manifestar-se somente em situações de maior stress, etc.

Trazemos conosco, impressas em nosso DNA, certas tendências pessoais que não estão apenas circunscritas ao funcionamento do coração, pulmão, doenças autoimunes, distúrbios da tireoide, etc., mas que também se estendem ao modo como nossos pensamentos e emoções são processados, afinal, o cérebro, que é a sede desse processamento, também foi estruturado pela genética. No entanto, o cérebro tem uma coisa diferente dos demais órgãos: a capacidade de “conversar” com o meio, de estudar dados, de reformulá-los e de reorientar ações. Tendo em mente a proposta classificatória acima para os níveis de controle pessoal sobre o próprio comportamento, chegaremos a parâmetros similares aos que, de maneira geral, a sociedade humana já vem adotando para lidar com essas questões, o que nos ajuda a entender como as pessoas, de maneira geral, se posicionam em relação ao comportamento alheio: quanto maior a possibilidade de escolha consciente dos próprios atos atribuída a alguém, maior a desaprovação e condenação social diante de ações potencialmente danosas ao outro, pois relevar um mal que nos tenha sido feito por alguém que não teve intenção consciente ou poder de escolha em não fazê-lo é sempre muito mais fácil que relevar um dano que nos tenha causado de forma intencional e consciente. Um tribunal de justiça, por exemplo, ilustra bem essa premissa na aplicação das leis, e o estudo da filosofia igualmente nos leva a conclusões semelhantes quando nos confrontamos com a difícil tarefa de definir “o mal”. 

Mark Hutten, um terapeuta americano especializado em educação e aconselhamento de indivíduos afetados por desordens do espectro autista e autor do site My Aspergers Child, diz o seguinte:

“A síndrome de Asperger (SA) e Autismo de Alto Funcionamento (AAF) são geralmente confundidos com o Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN). O motivo para essa confusão é compreensível uma vez que alguns dos sintomas encontrados em pessoas com SA e AAF também são encontrados em indivíduos com TPN. […] Apesar das similaridades, a diferença entre a Síndrome de Asperger/Autismo de Alto Funcionamento (SA/AAF) e o Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN) é ampla.” (Hutten, 2016 – O artigo original em inglês pode ser acessado aqui.)

É importante conhecer a diferença entre ambas as condições, dado que o transtorno narcisista costuma ter implicações bastante diversas do autismo, tanto para quem tem o transtorno quanto para as pessoas ao redor, servindo como um alerta de diferentes formas. Quando as pessoas ouvem a palavra “narcisista”, a maioria imagina que a descrição se refira a alguém cheio de si, com autoestima exageradamente elevada e prepotência de sobra. No entanto, o narcisismo enquanto transtorno pode ser mais grave do que o senso comum supõe, não somente pelo alto potencial de causar danos significativos à vida de seu portador e às das pessoas de seu convívio, como também pelo fato de que a extremidade severa do seu espectro pode associar-se à psicopatia. Quando o autismo foi descoberto, há algumas décadas, chegou a receber nomes como ‘esquizofrenia infantil’ e ‘psicopatia infantil’, mas tais nomenclaturas foram sendo removidas à medida que uma observação mais acurada e avanços no campo da psiquiatria demonstraram tratarem-se de transtornos essencialmente diferentes.

Embora atualmente um médico experiente e bem treinado tenha clara consciência da diferença entre ambos os quadros, há, ainda, muito equívoco, não somente por parte da própria área de saúde mental, ainda bastante heterogênea na profundidade de conhecimentos e condução dos atendimentos, como também por parte da própria construção cultural vigente, que retrata o narcisista como “um sujeito convencido” que pode ser incômodo, mas que não oferece maiores preocupações, e o psicopata como um assassino, emprestando estereótipos rasos e muita incompreensão. Não podemos menosprezar o poder dos estereótipos culturais, pois eles permeiam a análise de mundo da maioria e, por vezes, adentram, inclusive, a mentalidade do profissional de saúde menos treinado e experiente. Ficaríamos surpresos em ver quantos diagnósticos errôneos acontecem por culpa dessa junção entre conhecimento técnico insuficiente do profissional e a influência cultural a que estamos submetidos desde sempre.

Outro fator é a formação universitária das diferentes especialidades de saúde. Ao psiquiatra falta, muitas vezes, um aprofundamento em psicologia (nem tudo se resolve com medicação), e ao psicólogo falta um maior conhecimento dos distúrbios de base biológica (nem tudo se resolve com terapia psicológica). Muitos profissionais têm consciência disso e costumam trabalhar em conjunto, o que aumenta bastante a chance de oferecer ajuda adequada ao paciente.

Aprofundando a compreensão diferencial entre a Síndrome de Asperger (SA) e o Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN)

Observando as características de cada transtorno a seguir, fica fácil, a princípio, percebê-los como totalmente diferentes um do outro:

As principais características do autismo/síndrome de Asperger (SA) são: comportamento repetitivo, assuntos de interesse restritos e obsessivos, dificuldades na socialização e na linguagem, déficits na teoria da mente (falta de empatia cognitiva), problemas de regulação emocional e hipersensibilidades sensoriais.

As principais características do transtorno de personalidade narcisista (TPN) são: sentimento de grandiosidade (nem sempre explícito), busca excessiva por atenção ou admiração, necessidade de depreciar o outro, falta de compaixão/descaso pelos sentimentos alheios (falta de empatia afetiva), fixação em fantasias acerca de poder/sucesso/inteligência/aparência física, manipulação/interesse/exploração dos recursos alheios para ganho pessoal (medem relacionamentos em termos “utilitários”, ou seja, perguntando-se constantemente quais benefícios concretos a relação oferece – apenas o sentimento não é motivo suficiente para ficar com alguém), sentimentos de inveja e competitividade excessiva.

Tanto na SA quanto no TPN, a prevalência é maior em homens. Porém, enquanto a SA ocorre em cerca de 1% da população, a estimativa é de que o TPN ocorra em cerca de 6% da população. Alguns pesquisadores chegam a considerar uma prevalência para o TPN de até 15%. 

Existe grande dificuldade em obter números mais precisos acerca da prevalência de um transtorno de personalidade na população mundial, devido a alguns fatores: a variação das formas de apresentação do transtorno, o que inclui a ampla variação entre leve-moderado-grave no espectro em que o próprio transtorno se insere; o fato de que uma parte considerável da população costuma apresentar traços do transtorno sem que se configure o quadro completo, podendo confundir as estatísticas, o reduzido número de pesquisas desenvolvidas até a presente data; o fato de que grande parte dos portadores de transtornos de personalidade, principalmente portadores de TPN, não costuma procurar ou aceitar ajuda médica, inclusive por receio de julgamento negativo. Mesmo no autismo, o estabelecimento de uma prevalência exata é complicado, principalmente devido à desinformação que a área de saúde mental ainda enfrenta, falhando em reconhecer principalmente casos mais leves, mas é bem mais possível, pois pessoas autistas geralmente têm muito mais contato com profissionais de saúde mental, inclusive porque o autismo é um transtorno que aparece logo nos primeiros anos de vida, de modo que a pessoa acabe sendo levada às consultas ainda na infância, seja por preocupação dos cuidadores, seja por observação da escola (diferentemente de um transtorno de personalidade, que só costuma ser realmente identificável ou diagnosticado a partir da adolescência, ou já no início da fase adulta, pois mesmo que, em muitos casos, alguns traços já possam ser detectados desde a infância, evita-se falar nesse tipo de diagnóstico em relação a uma criança porque sua personalidade ainda está em formação; em manuais médicos, orienta-se o diagnóstico ‘oficial’ de transtorno de personalidade apenas a partir dos 18 anos).

A palavra “cluster” significa “grupo, ramo, agrupamento”. A psiquiatria classifica os transtornos de personalidade em clusters (A, B e C). O autismo não se insere em nenhum desses clusters, por não se tratar de um transtorno de personalidade, e sim de um transtorno neurobiológico.

O DSM (Manual Estatístico de Doenças Mentais) define o “Transtorno de Personalidade Narcisista – TPN” (no Brasil, CID F 60.8) como pertencente ao Cluster B, que é um conjunto de transtornos afins, onde também se insere o Transtorno de Personalidade Antissocial – TPA (CID F 60.2), evidenciando a conexão entre ambos os quadros, já que foram classificados dentro de um mesmo agrupamento. Os termos ‘sociopatia’ e ‘psicopatia’ não são usados como nomenclaturas oficiais de diagnósticos, de modo que o indivíduo que apresente estes tipos de funcionamento receba o diagnóstico de TPA (Transtorno de Personalidade Antissocial), embora haja alguns pesquisadores que não considerem o TPA o mesmo que psicopatia. De qualquer modo, as similaridades são massivamente maiores que eventuais dissimilaridades. Alguns especialistas acreditam que o Transtorno de Personalidade Narcisista pertença à extremidade leve do espectro do Transtorno de Personalidade Antissocial, uma vez que tenham praticamente os mesmos sintomas, sendo seu principal fator diferencial em relação à impulsividade que acarreta no descumprimento das leis e regras sociais: o perfil narcisista, mesmo discordando enraivecido, tende a obedecê-las, enquanto o perfil antissocial costuma transgredi-las mais facilmente, podendo envolver-se em atividades ilícitas com maior frequência. Uma revisão de literatura sobre doenças mentais em detentos mostrou que 47% dos homens e 21% das mulheres tinham o Transtorno de Personalidade Antissocial. (Patrick & Christopher, 2005).

Um transtorno de base neurobiológica provém de formação deficiente em determinadas áreas do cérebro responsáveis por determinadas funções. É sabido que uma das áreas do cérebro comumente prejudicadas no autismo é a região do lobo frontal, que não é capaz de desenvolver todas as suas funções de maneira neurotípica (isto é, com neurologia típica), sendo seu funcionamento, portanto, neurodiverso (isto é, com neurologia diversa do padrão encontrado na maioria da população). Para ler mais sobre os déficits no lobo frontal no autismo, acesse o post “Autismo e Prejuízo no Lobo Frontal” clicando aqui.

Um transtorno de personalidade, por outro lado, tem causas diferentes, estando primariamente associado a traumas e dificuldades diversas que tenham interferido na adequada formação do Self (unidade de personalidade e identidade) do indivíduo nos anos iniciais de vida. No entanto, acredita-se que fatores biológicos possam estar presentes, tornando o indivíduo mais suscetível às adversidades ambientais e, portanto, mais predisposto ao desenvolvimento de personalidade narcisista (ou sociopática), embora tais estudos ainda sejam insuficientes e não conclusivos. Essa susceptibilidade pode ser em relação a adversidades ambientais reais ou imaginadas, pois é frequente haver uma distorção de percepção e pensamento no transtorno de personalidade, que pode tornar mais negativa a impressão dos fatos ocorridos no entorno.

Um fator que fala em favor da influência genética é o fato de ser comum a presença de traços similares em membros da família e exames de imagens do mapeamento cerebral de sociopatas (e psicopatas) demonstraram menor acionamento nas áreas do cérebro responsáveis pelo processamento das emoções e capacidade de empatia, em comparação a pessoas sem este transtorno, o que sugere a presença de algum fator constitucional (ou seja, biológico) para além do psicoafetivo (isto é, relacionado a aspectos emocionais e psicológicos). Há relatos na literatura médica de que lesões no cérebro, especificamente no sistema paralímbico, podem (mas nem sempre ocorre) levar ao desenvolvimento de uma personalidade sociopática. O sistema paralímbico atua como um “centro de processamento comportamental” no cérebro, que inclui regiões como a amígdala e o córtex pré-frontal. Estas áreas são associadas com o processamento das emoções. Estudos sugerem que psicopatas não desenvolveram esse sistema adequadamente e que a causa disso possa ser geneticamente determinada (e possivelmente exacerbada pelo meio na ocasião de estimulação emocional negativa ou insuficiente).

Se considerarmos a correlação do Transtorno de Personalidade Narcisista com o espectro da psicopatia (Transtorno de Personalidade Antissocial), pode-se supor que tais influências genéticas estejam presentes, portanto, em ambos os casos. Estudos validam essa suposição: 

Um levantamento mostrou que a hereditariedade do Transtorno de Personalidade Antissocial está em torno de 40%, e para os outros transtornos de personalidade do Cluster B, a estimativa está em cerca de 30% a 60%. (Rhee e Waldman , 2002). Estudos posteriores chegaram a estimativas próximas de 80% para os transtornos de personalidade narcisista e borderline (Karolinska Institutet).

A saber, nem todo psicopata expressará suas tendências através de ‘assassinatos em série’, como muitos acreditam. Tal apresentação da psicopatia é mais um estereótipo culturalmente construído do que um dado real. Estima-se que não mais que 20% dos psicopatas engajem em atividade criminosa, embora talvez nunca saibamos se devido a um nível de psicopatia que não alcance o cume da frieza e malignidade, se por serem espertos o bastante para não engajarem em algo que lhes possa arruinar a vida caso sejam descobertos e condenados judicialmente ou se por uma indiferença tão grande pela existência alheia que não os motive a agir. No entanto, a capacidade de causar profundos danos psicológicos e emocionais aos outros é praticamente certa, dada a natureza predatória do transtorno e o fato de que convivem em sociedade de maneira disfarçada o suficiente para que estejam inseridos nos mais diversos contextos sociais (escola, trabalho, política, centros esportivos, hospitais… e até em lugares improváveis, como igrejas e centros de apoio social). Ou seja, é muito mais provável que o psicopata seja o vizinho gentil, o colega de trabalho dedicado ou o político defensor ferrenho da anticorrupção, do que um assassino. Mas uma dica é válida: psicopatas, assim como narcisistas, adoram poder e status. Assim, não é difícil encontrá-los em contextos que reflitam o alcance de uma posição nesse sentido ou o desejo perceptível que têm de alcançarem essas duas coisas. 

Um pouco mais sobre a causa e a natureza do Transtorno de Personalidade Narcisista

A seguinte descrição dos mecanismos de desenvolvimento e funcionamento do Transtorno de Personalidade Narcisista, feita por especialistas, conforme artigo publicado pela Associação Americana de Psiquiatria, nos esclarece um pouco mais sobre a causa e a natureza desse transtorno:

“O Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN) pode ser caracterizado por uma identidade superficialmente unificada, criada como tentativa de escapar da angústia da fragmentação interna. Contudo, esta estrutura do Self não proporciona uma experiência integrada de si e dos outros que a formação de identidade normal proporciona. Em vez disso, o senso de Self no TPN baseia-se na atribuição do indivíduo para si de todas as características e estados de afeto que sejam bons ou desejáveis, enquanto relega aos outros tudo o que for desvalorizado. Esta estrutura patológica do Self, referida como “self grandioso”, protege o indivíduo da angústia da fragmentação interna, mas às custas de um autoconceito superficial e frágil baseado na necessidade de ser excepcional e associado a dificuldades em estabelecer relações mútuas com as outras pessoas. Sempre que o indivíduo experiencia algo que possa ser um bloco construtor do self – um interesse, uma ideia – elementos agressivos e críticos na mente do sujeito atacam tais elementos através da autorreflexão de não ser bom o bastante, interferindo na capacidade do indivíduo de absorver qualquer coisa de valor. Assim, o self grandioso provê algum grau de estabilidade, mas às custas de estagnação e vazio interior. É como se o indivíduo desenvolvesse uma narrativa que absorve tudo o que é bom, mas que não corresponde à complexidade emocional humana ou à realidade da vida.” (Do artigo: “Narcissistic Personality Disorder: Challenge of Understanding and Diagnosis” |Transtorno de Personalidade Narcisista: Desafios de Compreensão e Diagnóstico|, por Frank Yeomans, Ph.D., professor de psiquiatria e diretor do Institute of the Weill Medical College of Cornell University, e Eve Caligor, M.D., professora clínica de psiquiatria na Columbia University de Medicina.)

A angústia da fragmentação interna descrita no início do trecho acima costuma ser relacionada pela Psicologia a eventos traumatizantes da infância ou à oferta insuficiente de segurança psicológica e afetiva à criança, que a tenham privado dos elementos necessários para a construção de uma autoimagem (autoestima) sadia e fortalecida o bastante para que não se desfragmentasse ou desenvolvesse um mecanismo de compensação que fosse um ego hiperinflado artificialmente, como faz o narcisista. Como a principal oferta de tais elementos costuma concentrar-se na família, é frequente que o transtorno de personalidade narcisista seja atribuído a um ambiente familiar pouco sadio.

Embora isso possa ser verdade em muitos casos, o que textos a esse respeito não abordam é que isso não é verdade também em muitos outros casos. Existem famílias que oferecem uma criação bastante decente e amorosa e, ainda assim, um ou mais filhos acabam desenvolvendo esse transtorno. A cultura da culpabilização dos pais infelizmente ainda é mais disseminada que dados sobre genética comportamental. Porém, o que estudos têm mostrado é que a genética tem um papel central no desenvolvimento dos transtornos de personalidade.

O Centro de Estudos de Psiquiatria (Centre for Psychiatry Research) do Departamento de Neurociências Clínicas (Department of Clinical Neuroscience) do Karolinska Institutet em Estocolmo coletou dados de 47.000 irmãos. Foram observados gêmeos idênticos e fraternos criados juntos e separados. O que eles descobriram foi que a criação oferecida teve pouco ou nenhum efeito na determinação de uma pessoa em desenvolver um transtorno de personalidade, pois a genética foi o principal fator determinante. Estima-se que o autismo tem cerca de 80% de hereditariedade e os transtornos de personalidade narcisista e borderline tenham cerca de 77% e 78% de hereditariedade, respectivamente.

Diante dos resultados de pesquisa acima, algumas pessoas rapidamente partiram para a conclusão de que, sendo um transtorno de personalidade hereditário, essa seria, portanto, uma outra forma de validar a cultura de culpabilização dos pais, pois, partindo do pressuposto de que ao menos um dos pais tivesse o mesmo transtorno, tal fato confirmaria a criação pouco sadia que teriam oferecido aos filhos, afinal, é difícil imaginar um pai ou mãe narcisista sendo capaz de oferecer um ambiente familiar satisfatório a uma criança. Novamente, isso pode ser verdade para muitos casos, mas não para muitos outros. Ocorre que a genética não é linear, “quadradinha” e previsível como se imagina. Nem sempre o transtorno mental será herdado imediatamente de pai (ou mãe) para filho (ou filha), podendo vir essa herança dos avós ou até bisavós, pulando gerações, ou apresentando-se de forma muito mais branda em uma geração que em outra. Ilustrando, imaginemos, por exemplo, Mateus, um jovem de 18 anos: Amélia (sua bisavó), tinha Transtorno de Personalidade Narcisista; ela teve João (seu avô), que tinha alguns traços do quadro (mesmo tendo convivido pouco com a mãe); João teve Júlia (mãe de Mateus), que não tinha traços narcisistas; Júlia teve Mateus, uma criança com muitos traços narcisistas e que, mais tarde, de fato, desenvolveu o transtorno. Esse tipo de apresentação genética é bastante comum.

Embora a ocorrência de um diagnóstico de autismo conjuntamente com o do Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN) ou Antissocial (TPA) seja incomum, pelo fato de serem condições que apresentam déficits e capacidades opostas em alguns pontos centrais, alguns estudiosos não descartam a possibilidade de uma coexistência de ambas as condições num mesmo indivíduo. No entanto, não há dados consistentes sobre isso na literatura médica, dada a dificuldade na obtenção de casos para estudo de sujeitos que se enquadrem nessa possibilidade (seja pela difícil identificação desses perfis, seja pela indisposição do sujeito em colaborar com as pesquisas). 

Porém, apesar dos dados apontarem não ser frequente que a síndrome de Asperger e o Transtorno de Personalidade Narcisista coexistam, são frequentes relatos informais de familiares que convivem com pessoas com uma ou a outra condição, e que observam traços significativos de uma condição presentes na outra. Por exemplo, a pessoa com TPN/TPA pode ter interesses obsessivos e restritos (como é comum no autismo) e a pessoa autista (especialmente na extremidade leve do espectro, especificamente no perfil Asperger) pode apresentar dissimulação e perversidade que não costumam ser observadas em quadros típicos de autismo. O que se nota, no entanto, é que os traços oriundos de outra condição costumam ser significativamente mais brandos do que quando inseridos no própria condição. Por exemplo: a repetição obsessiva de um assunto ou interesse no TPN tende a ser menos incisiva e incontrolável que a repetição obsessiva que ocorre no autismo, assim como a dissimulação e perversidade que estejam presentes no perfil Asperger tendem a ser menos elaboradas e “cruéis” que no TPN. Para fins diagnósticos, é preciso considerar para qual das condições o indivíduo preenche mais critérios, o que não exclui a possibilidade da presença de traços de outros transtornos que eventualmente “salpiquem” o diagnóstico central. Nem sempre esses traços ocorrerão de forma substancial o suficiente para preencher os critérios necessários para um diagnóstico comórbido, mas são traços que certamente acrescentarão dificuldades consideráveis às vidas de seus portadores e pessoas de convívio.

(Nota da autora do blog: apesar da falta de dados e da necessidade de pesquisas futuras, penso ser possível a existência de um subtipo de TPN, que seria um Transtorno de Personalidade Narcisista “Autístico”, ou seja, não apenas tendo algumas de suas características adaptadas ao perfil autista – o que, inclusive, dificultaria a identificação do transtorno pelo perfil diagnóstico convencional – , como também suas causas estariam principalmente relacionadas aos déficits do autismo, ou seja, ocorrendo independentemente do quão suficientemente boa teria sido a estrutura familiar à disposição desse indivíduo – e aqui a escola teria maior potencial para ocupar o papel de agente traumatizante; como veremos mais adiante neste artigo, não me refiro às características autistas que podem ser erroneamente interpretadas como narcisismo, e sim aos traços narcisistas reais que possam verdadeiramente estar presentes.)

Compreendendo Melhor os Equívocos entre Ambas as Condições

Como indivíduos com a Síndrome de Asperger (SA) costumam ter dificuldade de compreensão da perspectiva do outro (déficits na Teoria da Mente) e tendem a fechar-se em seus assuntos de interesse, isso os faz parecer egoístas e indiferentes às outras pessoas, o que, num olhar mais superficial, se assemelha ao descaso em relação ao outro, presente no narcisismo.

No Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN), é comum que o indivíduo passe muito tempo preocupado com poder, sucesso e aparência física. Os acometidos costumam ter egos frágeis e a necessidade de desprezar os outros na tentativa de validarem sua necessidade de superioridade. Costumam ter baixo nível de empatia afetiva e pouco ou nenhum remorso em causarem danos a outras pessoas em benefício próprio. Estes não são traços comumente observados em portadores da Síndrome de Asperger. O remorso, em especial, é um bom diferencial entre um e outro quadro. A pessoa com síndrome de Asperger costuma sentir remorso quando percebe que magoou o outro, o que não é frequente no quadro de TPN.

Há dois subtipos principais no Transtorno de Personalidade Narcisista, que são o “aberto” (do inglês, “overt”) e o “encoberto” (do inglês, “covert”). O primeiro subtipo (overt) é muito mais fácil de ser identificado, inclusive por se parecer mais com a ideia popular do que um ‘narcisista’ seja, por apresentar comportamento notoriamente exibicionista, demonstrando ego inflado, excessiva autoconfiança, traquejo social, ações intimidadoras, agressivas e claramente despreocupadas em passar por cima dos sentimentos das outras pessoas. No segundo subtipo (covert), também chamado de “vulnerável”, o perfil de personalidade é bastante introvertido, pouco hábil socialmente, e seus ideais de grandeza costumam estar disfarçados por uma aparente humildade, dada a preocupação com a forma como será visto pelos demais, à medida em que secretamente deprecia os outros e se percebe como superior, apresentando maior propensão a sentimentos de menos valia, ilusões paranoides que envolvem a ideia de estar sendo perseguido, depreciado ou diminuído, baixíssima tolerância à frustração e à menor possibilidade de crítica (real ou imaginária), hipersensibilidade e ansiedade.

Este segundo subtipo, o narcisista encoberto ou vulnerável (covert), é o que mais costuma ser confundido com pessoas no espectro do autismo, especialmente no tocante à tendência ao isolamento e menor habilidade social e à baixa tolerância à frustração acompanhada de quadro ansioso.

O TPN, assim como a maior parte das doenças mentais, costuma estar acompanhado por outras comorbidades, algumas delas podendo gerar sensibilidades que também lembram o autismo, o que amplia a confusão. É comum haver, por exemplo, transtornos alimentares, que podem ser confundidos com as sensibilidades sensoriais ao paladar que são frequentes em pessoas autistas. Como a ansiedade costuma ser elevada e sentimentos paranoides tendem a estar presentes, o indivíduo com TPN, muitas vezes, apresenta dificuldade de regulação emocional e cerca de 50% desenvolve depressão. Transtornos de ansiedade e depressão também são comorbidades comuns no autismo.

Os altos níveis de ansiedade frequentemente presentes em portadores do Transtorno de Personalidade Narcisista, causados principalmente por insegurança elevada derivada de baixa auto-estima e perfeccionismo crônico na tentativa de lidar com as falhas auto percebidas, costumam acarretar considerável nível de exigência para certos detalhes de sua rotina diária, que pode tornar-se rígida em certos aspectos, não sendo incomum a presença de traços do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) – que é um transtorno de base ansiosa – , ou mesmo sua manifestação completa como comorbidade, assemelhando-se, mais uma vez, a quadros de autismo de alto funcionamento, que também apresentam comportamento ritualístico.

A psicóloga americana Dr. Melanie Greenberg, Ph.D., autora do best-seller em Neuropsicologia e Manejo do Stress intitulado The Stress-Proof Brain (O Cérebro À Prova de Stress) diz o seguinte: 

“A auto depreciação e a preocupação constante quanto a não ser bom o bastante podem levar à depressão, ansiedade, transtornos alimentares e fadiga crônica.” (Greenberg, 2015)

Elsa Ronningstam, PhD, que é professora associada da Harvard Medical School em Boston e psicóloga clínica no McLean Hospital, em Massachusetts – USA, também coloca que:

“O Transtorno de Personalidade Narcisista ocorre geralmente em comorbidade com outros transtornos psiquiátricos para os quais o tratamento costuma ser buscado […] especialmente o abuso de substâncias, transtorno bipolar, transtornos alimentares ou transtorno depressivo maior.” (Ronningstam, 2016)

A repetição de ações/rotina rígida costuma ser muito mais acentuada no portador de SA do que num quadro de TPN, pois a dificuldade de regulação da repetição de ações tem como base um déficit neurobiológico no autismo, ou seja, boa parte desse comportamento é muito menos moldada por escolhas intencionais do sujeito, sendo este mais um fator que contribui para o diagnóstico diferencial. A pessoa autista tende a insistir mais na mesmice e a desenvolver hiperfocos mais duradouros – que podem até mesmo permanecer por toda vida – do que o portador do transtorno narcisista que, apesar do estabelecimento de uma rotina rígida, apresenta maior interesse em variar experiências e buscar novidades, inclusive reciclando e reinventando seus interesses com maior frequência, e uma descompensação emocional (explosões e impulsividade) menor quando sua rotina é quebrada ou quando algo inesperado acontece do que a observada em pessoas com autismo.

Outro ponto diferencial, ainda relacionado à rigidez mental, está no cumprimento de regras ou acordos. Pessoas com a síndrome de Asperger são muito mais propensas a cumprirem com algo que tenha sido acordado e a esperarem das outras pessoas a mesma aderência rígida a alguma condição previamente estabelecida, uma vez que tendem a achar que os outros sentem e agem como elas próprias, dada a dificuldade com a Teoria da Mente, que limita a capacidade que possuem em perceber a perspectiva do outro. Elas dificilmente mudam de opinião ou sentimento em relação a alguma coisa.

Pessoas com o transtorno narcisista, por outro lado, mudam de ideia ou sentimento com frequência, flexibilizando suas normas internas conforme lhes convier para o momento, quebrando regras ou desconsiderando acordos com muito mais facilidade que a pessoa com autismo. Em ambiente profissional, é notável a responsabilidade e esforço da pessoa com Asperger em cumprir com o que quer que lhe tenha sido atribuído, o que costuma ser bastante valorizado por seus empregadores, embora haja considerável dificuldade da pessoa com SA em aceitar as falhas alheias, de modo que se saiam melhor em atividades individuais do que em grupos. Enquanto a pessoa com Asperger cumpre com o que se espera dela por uma necessidade interna em seguir a regra e ‘fazer o que é certo’, a pessoa com TPN, quando cumpre uma responsabilidade profissional, costuma fazê-lo por outros motivos, tais como mostrar-se boa o bastante (pois sempre compete para ser a melhor), manter o emprego ou, então, pelo desejo de conseguir boas avaliações que lhe permitam subir na hierarquia organizacional, pois geralmente almejam o poder conseguido através de cargos de liderança. A preocupação com o poder e cargos de chefia não costuma fazer parte das características do portador de SA.   

Outro aspecto diferencial entre a SA e o TPN é que o narcisista esconde suas reais motivações dos demais por ter consciência e receio da reprovação social a que estará sujeito, tendo maior capacidade de portar-se conforme o contexto e ser charmoso o bastante para conquistar seu público, algo que a pessoa autista não consegue fazer tão bem, sendo comuns falas indevidas em situações impróprias e observações que, por vezes, podem soar rudes aos demais.

A distinção entre Asperger e Narcisismo depende, ao menos num primeiro momento, do conhecimento da real natureza e forma de pensar por trás do comportamento observado, em vez de somente da análise do comportamento em si. Sem o conhecimento da essência subjacente ao comportamento observado, é provável que, a princípio, o indivíduo receba o diagnóstico de autismo – tanto pela relutância em revelar-se mais abertamente ao médico, como pelo fato de serem comuns consultas apressadas ou médicos pouco experientes – para, apenas mais tarde, após acompanhamento e avaliação mais aprofundada, chegar-se à conclusão de que o quadro real seja de Transtorno de Personalidade Narcisista, ou mesmo Sociopatia ou Psicopatia, configurando o Transtorno de Personalidade Antissocial.

Geralmente, o médico psiquiatra vai, aos poucos, observando no paciente uma capacidade de compreensão do estado mental das outras pessoas muito mais desenvolvida do que seria de se esperar para um quadro de autismo, maior adequação/controle social durante a interação, bem como falas, pensamentos e intenções específicas que denotem outras nuances do transtorno narcisista, tais como:

  • Preocupações acima da média com autoimagem, humilhação ou temas acerca de poder e controle.
  • Investimento em relacionamentos interpessoais com foco na análise de custo/benefício que a relação oferece em vez da valorização do parceiro ou do sentimento em si.
  • Pensamento de grandiosidade acentuado (evidente ou mascarado) e, muitas vezes, não correspondente à realidade de vida atual do indivíduo.
  • Ações manipuladoras e/ou desprovidas de remorso e compaixão.

Tais características não costumam estar presentes num quadro de Asperger, conforme poderá ser observado nos artigos traduzidos mais adiante, o que não significa que não exista a  possibilidade – ainda que remota – de que uma ou outra dessas características estejam presentes também na pessoa autista, em níveis variados de intensidade, como já mencionado anteriormente, uma vez que autistas também podem, eventualmente, ter desenvolvido adaptações psíquicas narcisistas para alguns aspectos da vida.

Algumas características próprias do quadro de autismo, tais como a dificuldade em compreender as nuances sociais e a percepção de que os outros parecem sempre conseguir navegar melhor pelas situações da vida podem, por exemplo, simular na pessoa autista a crítica excessiva e o sentimento de menos valia presentes no narcisismo, levando a adaptações psicoafetivas similares às narcisistas. Ainda que o ambiente familiar seja acolhedor e amoroso, a criança autista padece muito emocional e psicologicamente no ambiente escolar, que costuma ser a fonte da maioria dos traumas na criança com síndrome de Asperger, pois o funcionamento típico das pessoas e dos colegas são naturalmente invasivos e agressores, ainda que ninguém esteja consciente disso. Por exemplo, o barulho intenso, o tipo de atividade a que a criança se vê sendo obrigada a participar, as brincadeiras, exigências e falas convencionais das pessoas, o toque, os esbarrões, a sensação de aprisionamento na sala de aula, a percepção de que os colegas parecem “deslanchar tranquilos” nas atividades que a ela parecem tão terríveis, a sensação de ser pouco acolhida pelo grupo, que acaba deixando a criança Asperger sozinha por ser considerada chata pelos colegas, enfim, são todos fatores que agridem bastante a vida interna da criança e formam um “balde de traumas e referências negativas sobre si mesma” que podem se sobrepor ao amparo recebido no lar. 

É Possível Identificar o Transtorno de Personalidade Narcisista na Infância?

O transtorno narcisista pode revelar indícios desde a infância, assim como ocorre na sociopatia e psicopatia. Porém, como crianças costumam naturalmente ter comportamentos narcisistas, a presença de tais traços não costuma despertar alerta e é, por vezes, difícil estabelecer uma linha divisória entre normal e patológico. No entanto, apatia/frieza emocional, falta de remorso, enurese persistente após os 6-7 anos de idade, inclinações de atear fogo às coisas e/ou depredar o ambiente e tendência a maus tratos aos animais são sinais que nunca devem ser ignorados, pois podem relacionar-se ao extremo mais severo do espectro do narcisismo, mais precisamente à psicopatia. Se a criança apresenta tais traços, é importante levá-la para uma avaliação psicológica, onde o profissional irá auxiliar no desenvolvimento de estratégias para lidar com o problema o quanto antes, na tentativa de interferir positivamente na formação da personalidade antes que ela se consolide. 

O reconhecimento clínico oficial do TPN não se dá antes da adolescência, assim como ocorre com qualquer transtorno de personalidade, uma vez que crianças ainda estejam em processo de formação de identidade e a psiquiatria entenda que não seja possível diagnosticar um transtorno numa personalidade que ainda não se constituiu por completo. Por isso, costuma-se reconhecer o transtorno como tendo início apenas no começo da fase adulta, que é quando seus traços se tornam realmente evidentes, inclusive pelo fato de que certos traços narcisistas que antes teriam sido considerados normais por pertencerem à infância, não deveriam mais estar presentes na fase adulta. O mesmo não ocorre com o autismo, que é um transtorno diagnosticado muito cedo, de forma que a criança já seja identificada como estando no espectro do autismo em torno dos 3 anos de idade (ou, no mais tardar, até 7 ou 8 anos em casos muito leves que dificultem o diagnóstico).  

Uma vez que não é incomum que o transtorno narcisista tenha como fator central amplificador de sua expressão a vivência de traumas e um ambiente familiar perturbado, é possível que a criança demore a iniciar o processo de fala, apresente comportamentos ansiosos, transtornos alimentares ou tendência ao isolamento social, que são todas manifestações possíveis diante de quadros traumáticos ou de negligência parental, o que poderia levá-la a ser confundida, num primeiro momento, com uma criança com autismo. Os sintomas são parecidos, mas as causas são diferentes. Pais de crianças com autismo que ainda não tenham um diagnóstico, sofrem, algumas vezes, acusações injustas de pessoas que interpretam esse tipo de sintomatologia como relacionada a traumas ou problemas na criação familar. No entanto, alguns fatores são determinantes na diferenciação entre estas duas condições na primeira infância. A presença dos elementos a seguir relaciona-se exclusivamente a um transtorno neurológico (ou seja, determinado biologicamente, como o autismo) e não a um transtorno de personalidade e/ou a causas emocionais e psicológicas:

  • Comportamento excessivamente repetitivo, ritualístico.
  • Hiperfoco em assuntos obsessivos e interesses restritos, geralmente referentes a objetos e seu funcionamento (geralmente envolvendo movimentos giratórios, tais como trens (rodas), robótica, sistemas planetários, portas, máquinas de lavar, ventiladores, etc.) ou à catalogação de tipos de objetos/animais/plantas (coleção de pedras, baterias, etc.)
  • Explosões emocionais muito frequentes e notadamente intensas (‘birras’ ou choro excessivo) por coisas aparentemente insignificantes (desproporcionais ao ocorrido) ou pelo não cumprimento de algum dos rituais existentes (por exemplo: não pulou dois degraus = ‘birra’ de meia hora); é comum que perdure após os 4 ou 5 anos de idade, fase em que a maioria das crianças já começa a superar birras intensas.
  • Descompensações emocionais e comportamentais frente a mudanças na rotina (mudança no mobiliário, no dia da semana em que se faz alguma coisa, no percurso habitual, no tipo de refeição, um novo professor ou colega na escola, etc.).

As hipersensibilidades sensoriais (audição, toque, paladar, visual ou olfato) precisam ser observadas caso a caso, pois algumas alterações podem estar presentes em outros quadros que não somente o autismo, embora sejam mais comuns às pessoas no espectro (especialmente a hipersensibilidade auditiva).

Impacto nas Relações Sociais

Embora o convívio com pessoas com os ambos os transtornos possa ser emocionalmente custoso, especialmente nas relações onde haja maior proximidade (parceiro afetivo, filhos, irmãos, pais), é fundamental compreender as implicações de cada caso.

O narcisismo é um déficit em se importar com os outros. A síndrome de Asperger é um déficit de compreensão social. Essa diferença tem implicações cruciais. Enquanto portadores de TPN costumam não sentir remorso pelo mal causado apesar da consciência do mesmo, pessoas com autismo sentem remorso quando conseguem tomar consciência do impacto de suas ações. Portanto, será o indivíduo narcisista o que mais gerará abuso emocional e danos à integridade – física, moral e/ou emocional – das pessoas com quem conviver.

Na SA, o déficit na Teoria da Mente faz com que o indivíduo tenha dificuldade em compreender a perspectiva das outras pessoas, levando à falta de consciência do impacto de suas ações nos demais, além da tendência repetitiva e obsessiva do seu funcionamento cerebral, que costuma isolá-lo por horas dos demais ao dedicar-se ao seu hiperfoco, de modo que tal indiferença não seja intencional. No TPN, por outro lado, a capacidade de compreensão da perspectiva alheia está preservada e, portanto, também a consciência do impacto das ações no outro, e o que ocorre é uma escolha consciente em excluir os demais quando imerso em atividades de interesse, de forma que a indiferença observada seja intencional.

Pessoas no espectro do narcisismo não têm empatia afetiva. Isso significa que elas não podem “sentir” a dor do outro, embora tenham consciência dela. Em contraste, pessoas no espectro do autismo não têm empatia cognitiva. Isso significa que elas têm dificuldade para compreender o estado mental do outro, mas sua capacidade de sentir está intacta.

Portanto, uma diferenciação importante entre indivíduos no espectro narcisista e indivíduos no espectro do autismo está nos diferentes tipos de deficiência da empatia. Alguns pesquisadores sugerem a hipótese de que uma mesma pessoa possa apresentar ambos os tipos de déficits simultaneamente, mas tal ocorrência seria bastante rara e quase não há menção a casos assim na literatura médica, mesmo porque certas características do narcisista (compreensão social, capacidade de manipular/fingir e agir do modo certo quando lhe convém e frieza emocional) não costumam integrar o perfil de pessoas autistas, o que, por si só, costuma tornar um diagnóstico excludente do outro. Há especulações em relação a alguns casos de atiradores em massa, cujos assassinos teriam sido identificados como portadores de autismo, quanto à real confiabilidade do diagnóstico, e se não teriam tido um Transtorno de Personalidade Antissocial, com eventuais comorbidades, confundido com autismo, pois a frieza e premeditação dos crimes não são características comumente encontradas em pessoas autistas, cujas eventuais manifestações de raiva e violência tendem ser impulsivas e imediatistas, ou seja, reativas no ‘calor do momento’.

Em ambiente profissional, colegas de trabalho ou, especialmente, chefes com perfil narcisista costumam levar seus subordinados (ou um deles, que seja o alvo do momento) à exaustão mental e emocional e é frequente o afastamento da pessoa afetada por motivos de stress intenso, descompensação emocional e psicológica, sensação de estar ficando louca dadas as situações manipuladoras e enganosas a que foi submetida sem que houvesse testemunhas, de modo que lhe seja difícil explicar ou provar sua inocência em tramas em que se veja envolvida, além de sofrer traumas, fobias e danos à autoestima que podem trazer repercussões sérias para toda uma vida, em especial se a pessoa não tiver acesso a tratamento profissional. O portador de TPN tende a manipular, desvalorizar, enganar e – dependendo do subtipo de narcisismo a que pertence – expor o outro. O portador de SA, por outro lado, poderá causar inimizades e afastamento dos colegas devido a falas ásperas e aparente desinteresse em socializar-se ou participar das brincadeiras e trivialidades típicas sociais, mas não estará engajado em manipulações e ataques intencionais aos colegas ou subordinados.

Outras relações sociais com perfis narcisistas sofrerão impactos similares, tais como amizades (sendo maior o dano quanto mais próxima for a interação e maior a confiança depositada no narcisista) e parceiros afetivos, sendo estes últimos os mais especialmente afetados, dada a natureza íntima da relação.

Relacionamentos Amorosos com Portadores de TPN

O indivíduo com funcionamento narcísico costuma causar feridas emocionais profundas, colapso, despersonalização e esvaziamento emocional em seus parceiros através de um padrão típico de relacionamento disfuncional narcísico conhecido como “valor, desvalor e descarte”.

No início do relacionamento, o parceiro costuma receber um “bombardeamento” de amor, ou seja, o narcisista dará demonstrações excessivas de atenção e afeto, como o envio de mensagens diárias, esforços incansáveis para encontrar a outra pessoa a todo instante, exagero de elogios tais como dizer que o parceiro é um ser divino, a pessoa mais importante dentre todas, um magnífico príncipe ou princesa, oferta constante de presentes e rápidas promessas de uma vida juntos, casamento, filhos, etc. Esta primeira fase se parece  com o que comumente se vê nos estados típicos de apaixonamento, exceto pelo fato de que um estado de apaixonamento convencional costuma ser menos exagerado, as promessas de vida não surgem de imediato e o efeito do apaixonamento costuma durar de seis meses a dois anos, em média, diminuindo gradativamente e dando lugar a um maior companheirismo, enquanto para o narcisista essa fase dura um mês ou dois, em média, e acaba repentinamente, literalmente de um dia para o outro, causando um estado de confusão e sentimento de rejeição e inadequação no parceiro, que, num primeiro momento, costuma achar que fez algo errado que tenha decepcionado o narcisista.

Esse resfriamento repentino, quando tudo parecia tão bem, é o início da fase conhecida como desvalorização. Nessa etapa do relacionamento, o outro passa a ser (aberta ou disfarçadamente) desvalorizado, invejado, inferiorizado, depreciado (muitas vezes falando mal do parceiro para os outros), rejeitado (são comuns falas que façam o parceiro se sentir pouco interessante ou desejado, demonstrações de aversão ao toque ou de falta de interesse em sexo) e criticado por suas ‘imperfeições’, que são, na maioria das vezes, projeções exageradas ou não existentes, para que, finalmente, geralmente de forma abrupta e inesperada, ocorra – inevitavelmente – a terceira fase, conhecida como descarte. O parceiro narcisista costuma simplesmente sumir sem qualquer explicação, passa a não responder mais as mensagens ou atender as ligações do parceiro, oferecendo apenas completo desprezo, desconsideração e frieza emocional, como se tivesse descartado um objeto em vez de um ser humano.

O portador do TPN não é considerado psicótico, ou seja, não apresenta perda do contato com a realidade, pois mantém intacta a noção de certo e errado e é capaz de organizar conscientemente suas ações. No entanto, estão presentes no transtorno processos de distorção da realidade através de projeções acentuadas, que são centrais ao quadro. Como seu ego frágil evita continuamente entrar em contato e reconhecer suas próprias falhas e limitações, o narcisista projeta o que é dele no outro, quer seja numa única pessoa, quer seja num grupo social específico, que idolatre ou passe a odiar.

Assim, no início do relacionamento, ele projeta seu ideal de perfeição no outro, mas, quando se dá conta da presença de alguém na relação que não seja ele mesmo (no mito que deu origem ao nome desse transtorno, Narciso apaixonou-se por si mesmo), e sim uma outra pessoa com desejos, necessidades e qualidades próprias que, portanto, não pertençam unicamente a ele ou que não sirvam apenas aos desejos dele, o narcisista se ressente e passa a projetar toda a sua baixa autoestima, fraqueza de caráter, sadismo, insuficiências e raiva de si mesmo no outro, como forma precária, comodista e egocêntrica de preservar o falso self grandioso que criou para lidar com o próprio sentimento de menos valia e auto desprezo, depositando no parceiro toda a culpa e detrito interno que, na verdade, são dele próprio. Ao descartar o parceiro, portanto, ironicamente descarta a si mesmo. Quanto mais a relação o lembrar de suas próprias falhas e ameaçar seu senso de grandiosidade, maior será o ataque à outra pessoa. 

A projeção do Narcisista

Quadros mais leves de narcisismo ou, então, interesses secundários que tornem o parceiro especialmente ‘valioso’, tais como status, vantagens financeiras/materiais, um parceiro que funcione como ‘secretário’ para os assuntos do dia a dia ou que seja uma fonte importante de subsistência, podem permitir a existência de relacionamentos de longo prazo, porém geralmente às custas de constantes desvalorizações, traições (que podem ser de diversos tipos), desprezo e humilhações infligidas ao parceiro, que acaba se submetendo ao relacionamento abusivo em que se vê enredado por não encontram meios – práticos (como uma mãe que depende da ajuda do parceiro para criar os filhos, por exemplo) ou psicoafetivos (comuns em vítimas de abuso) – para se livrar do abusador.

Caso a relação ocorra com um membro familiar que não possa ser fisicamente ‘descartado’ através de um rompimento completo das relações e comunicações, como no caso de um cônjuge, pai ou filho, por exemplo, o descarte se torna emocional, através de desprezo.

Finalmente, é comum que esse ciclo se repita com novos parceiros, ou se reinicie com o parceiro atual, havendo nova valorização, para posterior desvalorização e descarte, de modo que o relacionamento jamais se torne funcional, normal ou saudável, de forma que o abuso emocional e psicológico do parceiro nunca tenha fim.

O portador do TPN, assim como ocorre com a maioria dos transtornos de personalidade, costuma manter o mesmo padrão de funcionamento por toda a vida, de modo que permanecer na relação esperando que a pessoa mude ou melhore seja, infelizmente, uma opção embasada apenas em ilusão, que somente acarretará sofrimento e decepção.

Relacionamentos Amorosos com Portadores da Síndrome de Asperger

O padrão de relacionamento acima descrito para portadores do Transtorno de Personalidade Narcisista não costuma ser observado em portadores da síndrome de Asperger que, apesar de também apresentarem dificuldade na reciprocidade típica das relações humanas, podem ser capazes de manter relacionamentos de longo prazo e demonstrar maior compaixão e consideração pelo sentimento do outro (alguns, inclusive, demonstram isso quando tentam esforçar-se em melhorar) uma vez que consigam compreender a perspectiva alheia. Também não costuma haver manipulação e estilo predatório, bem como frieza emocional e indiferença diante da constatação do sofrimento do outro.

No entanto, a queixa comum das pessoas que convivem com alguém com SA, especialmente quando se trata de um relacionamento amoroso, é de que se sentem vítimas de “privação de afeto”. É comum que o parceiro se ressinta da falta de demonstrações típicas de afeto, como palavras e gestos, ou seja, de expressões mais tangíveis de amor.

Num primeiro momento do relacionamento afetivo, é possível que a pessoa com SA tente reproduzir coisas que aprendeu em filmes ou que leu a respeito como sendo desejáveis num relacionamento, embora sem exageros e sem muito sucesso. O estilo geralmente reservado e frequentemente intelectual e excêntrico do portador de SA pode ser atraente para o parceiro, que, apesar das expressões amorosas contidas, parece ter encontrado um relacionamento seguro e estável, o que costuma realmente ser o caso, pois pessoas com Asperger tendem a ser responsáveis, transparentes e leais. Porém, no decorrer no relacionamento, especialmente após o casamento e instalação da rotina, o parceiro neurotípico deixa de receber as singelas demonstrações românticas que ainda faziam parte da relação, uma vez que o portador de SA vai ganhando intimidade e liberdade para ser ele mesmo, relaxando as preocupações em agir de forma romanticamente adequada que haviam no início do relacionamento, uma vez que demandam alta energia mental e causam stress, envolvendo-se no próprio mundo com a frequência e intensidade típicas de sua condição natural. Não é um processo planejado, e o portador de SA, muitas vezes, sequer se dá conta das necessidades do outro, ou então, caso o parceiro lhe diga do que sente falta, pode não ser compreendido, de fato. Como a pessoa com SA tem dificuldade de expressão emocional, acaba se abstendo de qualquer reação, focando a atenção unicamente naquilo que compreende, dentro do seu mundo lógico e racional.

A dificuldade com a expressão das próprias emoções não significa que não existam, pelo contrário, podem senti-las com intensidade, mas a forma de expressão costuma ser diferente, como, por exemplo, demonstrar seus sentimentos por alguém em termos mais concretos e práticos, consertando algo ou comprando alguma coisa que a pessoa precise. Além disso, costumam ter menor necessidade de vivências afetivas que a pessoa neurotípica. Seria como se a necessidade afetiva fosse, para o portador de SA, como um copo, sendo rapidamente preenchido, causando stress em caso de transbordamento, enquanto o parceiro neurotípico tivesse um balde precisando de muito mais conteúdo para enche-lo. Não nos esqueçamos, no entanto, que tudo isso ocorre num espectro, bem como do fato de que mulheres com Asperger tendem a ser mais expressivas no afeto que homens com a síndrome, embora menos se comparadas a mulheres neurotípicas.

Como o autismo costuma causar um estilo mental de extremos, muitas vezes, o portador de SA pode ser excessivamente interessado em sexo ou tornar-se assexual, sendo o segundo caso o mais comum, especialmente depois do casamento ou da chegada dos filhos. É frequente que o parceiro sem SA se veja num relacionamento onde existe a estabilidade do compromisso (por exemplo, sem ameaças de divórcio ou traições), mas se sinta emocionalmente exausto, negligenciado e carente, muitas vezes enfrentando deterioração da saúde mental e quadros de depressão.

A falha na habilidade de compreender a perspectiva alheia acarreta no parceiro sentimentos de ressentimento pela falta de empatia, de gestos de conforto frente a mágoas ocorridas ou de expectativas não correspondidas. Enquanto pessoas neurotípicas costumam ser capazes de ler a expressão corporal e facial do outro com mais eficácia, conseguindo, portanto, compreender o sentimento do parceiro naquele momento, bem como o que pode ter gerado tal reação e o que é possível ser feito como reparação, o mesmo costuma ser bastante difícil para alguém com SA que, ou não consegue ler a linguagem não-verbal apropriadamente, ou não sabe o que dizer ou fazer na situação.

O portador de SA pode encontrar dificuldade em assumir certos aspectos práticos da vida que o parceiro neurotípico pode acabar tendo que arcar de forma que se sinta sobrecarregado, como se exercesse o papel de cuidador.

O diagnóstico acertado se torna crucial para que o portador de SA conheça suas limitações e busque estratégias para melhorar seus relacionamentos interpessoais, e para que o parceiro entenda melhor as dificuldades existentes e leve certos aspectos da relação para um lado menos pessoal, compreendendo inclusive a inabilidade comunicativa do portador de SA, que se agrava quando sob pressão, ansiedade ou stress, podendo torná-lo verbalmente abusivo nessas situações. Geralmente, a pessoa com SA se arrepende do que diz, mas, ainda assim, não sabe como reparar o ocorrido.

É possível obter melhora no relacionamento e no comportamento do portador de SA, mas, para tanto, é preciso um longo trabalho, geralmente com auxílio de um terapeuta que entenda de Asperger, além de muita paciência e dedicação.

Prognóstico

A adequada compreensão de qualquer condição mental existente será fundamental tanto para seu portador – posto que a consciência das próprias dificuldades possibilitará maiores chances de encontrar recursos adaptativos mais adequados para lidar com elas – como para aqueles que convivem com a pessoa acometida.

Pessoas no espectro do autismo podem evoluir e progredir, melhorando suas relações sociais uma vez que desenvolvam maior compreensão da realidade do outro, o que costuma motivá-las a um esforço em melhorar seu padrão comportamental e tornarem-se mais bem ajustadas socialmente. Além disso, a natureza neurobiológica do quadro também alcança, ainda que lentamente, melhorias pelo próprio desenvolvimento/amadurecimento natural do organismo, uma vez que o cérebro tem sempre tendência a buscar reparar prejuízos existentes.

Personalidades narcisistas, em contrapartida, tendem a um padrão permanente de funcionamento, ou seja, propenso a muito pouca ou nenhuma alteração, dado o fato de que a personalidade é, dentre outras coisas, uma adaptação psíquica do ser humano em relação ao ambiente e à sua forma de existir no mundo, sendo fortemente moldada na primeira infância e irradiando seus construtos-base por toda a vida.

Todo ser humano tem potencial para evoluir, de forma que sempre exista a possibilidade de que melhoras sejam obtidas. Porém, em se tratando da modificação de estruturas mais rígidas, como é o caso da personalidade, é preciso muita motivação pessoal, disposição para autoanálise e engajamento em processos terapêuticos para que se obtenha progresso. Nesse ponto, pessoas com um transtorno narcisista acabam tendo chances de melhoria reduzidas dada a pouca motivação em engajar em processos de transformação pessoal, não somente porque não costumam achar que seu comportamento deva ser modificado, como também pelo fato de obterem proveitos que alimentem sua natureza perversa e abusiva.

Outro fator crucial para a obtenção de benefícios em qualquer trabalho terapêutico é tomar para si a responsabilidade do mesmo. Perfis narcisistas não costumam assumir a responsabilidade pelos próprios atos, frequentemente projetando e culpando os outros por suas próprias falhas, e assim o farão também com o terapeuta, que, em dado momento, após uma fase inicial de idealização, passará pela fase de desvalorização, não sendo mais considerado bom o bastante, e inevitável descarte, com o abandono da terapia. Todo esse funcionamento faz com que raramente procurem ajuda profissional, ou, se procuram, o fazem geralmente motivados por quadros de depressão, ansiedade ou outros distúrbios que acompanham o transtorno e geram desconforto para eles próprios, e raramente por alguma preocupação com o desconforto do outro (tudo isso varia num espectro), mas acabam abandonando o tratamento pouco tempo depois, pois, sobretudo, não têm capacidade de vínculo, confiança e comprometimento com outro ser humano (o terapeuta), o que é um pré-requisito central em qualquer terapia.

Quanto à questão do espectro em que as doenças mentais se dão, vale citar que um indivíduo narcisista de grau leve pode eventualmente apresentar algum grau de empatia e consideração, que menor será quanto mais próximo estiver da extremidade severa que adentra a sociopatia ou até mesmo a psicopatia, assim como um indivíduo no espectro do autismo de grau leve pode apresentar maior capacidade de entendimento da perspectiva do outro, embora sempre vá haver um déficit substancial o bastante que justifique o diagnóstico.

Os elementos “consciência” e “perversidade” presentes no quadro narcisista – e não comumente no quadro autista – são os fatores responsáveis pela repulsa geralmente observada na sociedade para com os indivíduos portadores de TPN, afinal, embora esses indivíduos provavelmente tenham sido vítimas no passado, acabaram por constituir uma forma de adaptação psíquica para lidar com sua dor através do desprezo pela dor do outro, ou seja, tornando-se eles próprios os algozes cujas escolhas – agora conscientes – os tornam intencionalmente responsáveis por danos consideráveis às vidas de outras pessoas, o que, aliás, é ilustrado pela ampla gama de publicações na mídia feitas por ‘vítimas’ (como se auto intitulam) de relacionamentos abusivos com pessoas portadoras desse transtorno, evidenciando o elevado grau de sofrimento psicoafetivo e destruição pessoal a que estas pessoas foram submetidas.

Assim, a questão do estigma social é outro fator que pode fazer com que o médico relute em fornecer ao paciente um diagnóstico de transtorno de personalidade.

Importante: é preciso estar claro que nenhum ser humano é igual ao outro e variações – tanto em relação ao funcionamento interno do sujeito, quanto às ocorrências específicas de história de vida – evidentemente estarão presentes, alterando a intensidade e severidade dos sintomas, de modo que o presente artigo tenha como único objetivo oferecer uma base informativa geral, não sendo de modo algum a última palavra sobre o assunto ou uma ferramenta diagnóstica, devendo este tipo de avaliação ser feita por um médico da área de psiquiatria.


Para saber mais sobre as características, causas e diferenciações entre os dois quadros, seguem traduções de três  artigos: os dois primeiros, escritos por especialistas, apontam as similaridades e não similaridades entre as duas condições, e o segundo traz, ainda, dicas para quem convive com portadores de cada perfil; o terceiro artigo trata especificamente do Transtorno de Personalidade Narcisista e traz uma reflexão da condição sob dois pontos de vista, o de opressor e o de vítima da própria doença mental.

Apesar da ampla diferença entre as duas condições, existe sempre a possibilidade de que alguém diagnosticado com autismo venha a apresentar algum transtorno de personalidade – ou traços – como comorbidade. Até o presente momento, não há dados claros nesse sentido, inclusive pela dificuldade em avaliar transtornos de personalidade, mas se partirmos do pressuposto de que todos nós temos uma personalidade, independentemente da nossa condição biológica, automaticamente precisaremos reconhecer que esta porção de nós mesmos estará sujeita a formar-se de modo deficitário ou a adoecer.

Artigos Adicionais Relacionados

Artigo 1


Narcisismo ou Asperger? Como Saber a Diferença

Por Sharie Stines, doutora em Psicologia, autora do livro Narcissistic Relationship Survival Guide (Guia de Sobrevivência do Relacionamento Narcisista), dentre outros temas relacionados; Califórnia, USA. (Você pode acessar o artigo original aqui)

Young person with shoulder-length hair lies on stomach in park using laptop computer

Como terapeuta trabalhando com pessoas afetadas por alguém com um transtorno de personalidade, geralmente ouço a seguinte pergunta: “Como sei se o meu parceiro é narcisista ou tem a síndrome de Asperger?”. […]

Uma coisa a saber, ambas as condições estão num espectro. O Narcisismo é um transtorno de personalidade que vai da forma leve à severa. Nas instâncias mais severas, a pessoa demonstra tendências sociopatas ou personalidade antissocial.

O autismo também reside num espectro. É uma condição de desenvolvimento neurologicamente determinada. Até 2012, pessoas com sintomas leves, consideradas de “alto funcionamento”, eram identificadas como tendo a síndrome de Asperger. Após a publicação da quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), esse rótulo caiu em desuso, substituído pelo termo genérico “espectro do autismo”.

Uma vez que neurônios espelho são parte do sistema de interação social do cérebro – envolvidos em pistas sociais, imitação, empatia e a habilidade de decodificar a intenção dos outros – alguns cientistas descobriram que pessoas no espectro do autismo têm um sistema de neurônios espelho disfuncional (Universidade da Califórnia, San Diego, 2005). Parece que neurônios espelho também desempenham um papel em questões relacionadas aos transtornos de personalidade. Uma infância emocionalmente negligenciada, envolvendo pais que não ofereceram empatia, pode resultar em traços narcisistas na vida adulta. Já foi sugerido que isso ocorra devido a pobre utilização dos neurônios espelho na infância, o que levaria a neurônios espelhos disfuncionais na vida adulta (Kellevision, 2015).

A seguir está uma tabela mostrando algumas das diferenças e similaridades entre as duas condições. Você consegue ver seu parceiro em alguma dessas colunas? É possível que você veja seu parceiro tendo sintomas em ambas as colunas?

Tabela

Se você gosta de alguém que esteja no espectro do autismo

Se você estiver num relacionamento com alguém que esteja no espectro do autismo, é importante saber como tomar conta de si mesmo. Aqui vão algumas dicas:

  • Esteja em seu melhor estado de espírito.
  • Assuma sua própria vida. É preciso ser flexível e adaptável.
  • Entenda que precisará fazer as coisas por si mesmo(a). Seu parceiro(a) provavelmente não será capaz de fazer as coisas que sejam importantes para você – ao menos não de maneira satisfatória. Em vez de se chatear com isso, recomendo que pratique a aceitação. É libertador entender a situação e ajustar-se de acordo em vez de esperar que a situação se ajuste a você.
  • Perceba que é possível ensinar a pessoa com autismo a ser diferente. Isso irá requerer paciência e perseverança. Não se satisfaça com a forma como as coisas são; em vez disso, insira-se no processo e ajude a pessoa que você ama a como se relacionar de forma mais saudável.
  • Reconheça que se seu parceiro machucar você, não costuma ser intencional. Não leve para o lado pessoal e não se surpreenda. Ele não terá feito isso para ser controlador, para alimentar o próprio ego ou para satisfazer uma necessidade pessoal de superioridade.
  • Pesquise e estude o autismo e aprenda o que puder para ter compaixão pelo seu parceiro.

Se você gosta de alguém que tenha um transtorno de personalidade

 Se você estiver com alguém que tenha um transtorno de personalidade como o narcisismo, então você pode ter questões de insatisfação no relacionamento similares, além de um bônus, que é o abuso emocional. A seguir, estão algumas sugestões para estar nesse tipo de relacionamento:

  • Observe o comportamento da pessoa, não o absorva.
  • Entenda que pessoas com narcisismo não cooperam ou colaboram bem; você terá que aprender a ser independente.
  • Não espere que a pessoa alguma vez tenha empatia ou compaixão por você.
  • Desenvolva conexões felizes, saudáveis, em outros relacionamentos. Não espere que a pessoa com narcisismo aceite outras pessoas do seu convívio.
  • Reconheça que seu parceiro(a) pode ter prazer em te machucar. O motivo pode ser difícil de entender. Estude o conceito de “suprimento narcisista” e você descobrirá que pessoas com narcisismo são “alimentadas” pelas reações que obtêm dos outros, pois isso as ajuda a se sentirem no controle, superiores ou com poder.
  • Perceba que você poderá não conseguir ensinar uma pessoa com narcisismo a ser diferente. Não importa quanta paciência e perseverança você tenha, você provavelmente descobrirá que nada funciona para mudar a outra pessoa. Você pode mudar apenas a si mesmo.
  • Pesquise e estude transtornos de personalidade e aprenda como ter compaixão por si mesmo.

Artigo 2


É Asperger, Narcisismo ou Ambos?

Por Mark Hutten

Mark Hutten é um terapeuta americano especializado em educação e aconselhamento para indivíduos afetados por desordens do espectro autista. Seu site My Apergers Child é um dos mais acessados sobre o assunto. (O texto original pode ser acessado aqui.)

A síndrome de Asperger (SA) e Autismo de Alto Funcionamento (AAF) são geralmente confundidos com o Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN). O motivo para essa confusão é compreensível uma vez que alguns dos sintomas encontrados em pessoas com SA e AAF também são encontrados em indivíduos com TPN. Algumas das similaridades entre SA/AAF e TPN podem incluir:

  • Aparente falta de empatia
  • Dificuldade em entender os sentimentos dos outros
  • Personalidade excêntrica
  • Comunicação interpessoal dura, áspera
  • Inabilidade em perceber o mundo do ponto de vista dos outros
  • Falta de interesse nos outros, foco óbvio em si mesmo nas relações sociais
  • Atividades e interesses restritos
  • Ensimesmamento
  • Forma de olhar, movimentos do corpo e expressões faciais similares (para alguns subtipos do perfil narcisista¹)
  • Tendência a reagir aos problemas sociais/stress com depressão
  • Habilidades de conversação subdesenvolvidas (para alguns subtipos do perfil narcisista¹)

Apesar das similaridades listadas acima, a diferença entre a Síndrome de Asperger/Autismo de Alto Funcionamento (SA/AAF) e o Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN) é ampla, como noite e dia. Aqui estão alguns exemplos de suas dissimilaridades:

  1. O portador de SA quer uma vida boa e feliz, não apenas para si mesmo, mas para todos. Ele preferiria “encaixar-se” num grupo (ou simplesmente ser deixado em paz) em vez de querer ser o “chefe” ou o “líder” – mesmo que seja o aluno mais brilhante da sala. O Narcisista, contudo, quer uma vida boa e feliz apenas para si mesmo (ou para os indivíduos que ele incluir em seu círculo íntimo). Ele quer estar no controle e não se importa com quem ele tenha de ferir para obtê-lo. Ele fará qualquer coisa para comandar as pessoas em volta dele (sem que seja notado como “controlador”).
  2. O portador de SA geralmente presta pouca atenção à linguagem corporal dos demais – e teria grande dificuldade em lê-la, mesmo que tentasse. O Narcisista presta cuidadosa atenção à linguagem corporal das pessoas – procurando sinais de suas fraquezas ou vulnerabilidades – e então captura a oportunidade de explorá-las para seu próprio benefício.
  3. A pessoa com Asperger geralmente não tem intenções secretas quanto aos outros. O Narcisista, no entanto, respira e vive de intenções secretas, como manipuladores costumam fazer.
  4. A pessoa com Asperger quer simplesmente ser tratada com consideração normal e respeito, mas ela geralmente recebe muito menos respeito do que merece devido aos seus déficits sociais, excentricidades e falta de desejo em querer parecer “descolada” aos olhos dos outros. Ao contrário, o narcisista tipicamente recebe mais respeito do que merece uma vez que seja bom em se apresentar como o mais inteligente, mais “bacana” do pedaço (no caso de narcisistas “overt”²). Ele descarta e desvaloriza os outros para parecer melhor.
  5. O indivíduo com Asperger geralmente parece egoísta, pouco atencioso e insensível devido ao fato de viver em seu “pequeno mundo próprio”, geralmente cuidando da própria vida até excessivamente. O indivíduo com Transtorno de Personalidade Narcisista geralmente parece egoísta, pouco atencioso e insensível por realmente ser assim.
  6. O portador de SA pouco provavelmente se dará conta das regras implícitas da conversa (por exemplo, inapto a ler ou exibir linguagem não-verbal, pode divagar sobre seu interesse especial mesmo quando o ouvinte já parou de prestar atenção, pode não permitir que os outros falem na vez deles, interrompe o interlocutor quando tem vontade, etc.). Por outro lado, o Narcisista presta muita atenção às regras de conversação e é bastante verbal, usando a linguagem como recurso de manipulação para alimentar o ego.
  7. A pessoa com Asperger deseja casamento, filhos, amigos e aceitação social, mas é pouco assertiva sobre como obter essas coisas. Como resultado, pode desenvolver medo de rejeição – e mesmo escolher um estilo de vida solitário. Em contrapartida, o Narcisista tem a habilidade de alternar entre responsividade social e desvinculação. Ele não está interessado em relacionamentos com as pessoas, porque ele as vê como não valendo a pena ou sendo inferiores. Contudo, se puder tirar vantagem de alguém para se auto beneficiar, ele irá facilmente recobrar seu charme e habilidade social.
  8. Pessoas com Asperger não exploram narcisistas. No entanto, narcisistas exploram pessoas com Asperger. Na verdade, o indivíduo com Asperger pode ser considerado um alvo que seria de preferência para o narcisista.
  9. A pessoa com Asperger apresenta atrasos desenvolvimentais, enquanto o Narcisista apresenta falhas de personalidade.
  10. O indivíduo com Asperger é um tanto inocente, enquanto o narcisista é astuto e culposo.

Analogicamente, o indivíduo com Asperger é focado numa ‘ferramenta’ de interesse, em como é feita, no que mais serve para ser usada, comparando e contrastando ferramentas similares, e em como fazer versões melhores, como pode ser usada para ajudar os outros – e quer contar a todos TUDO sobre isso. O narcisista, por outro lado, é focado em ser visto pelos outros como o “criador da ferramenta” (sendo ou não), em receber crédito por ter criado a melhor ferramenta, e em como ela pode ser usada para ganhar muito dinheiro e servir aos seus propósitos pessoais.

Em resumo, o Narcisista é alguém excessivamente preocupado com poder, prestígio e vaidade – e é incapaz de compreender o dano destrutivo que causa à medida em que passa por cima das pessoas e pisa nelas para atingir seus objetivos egoístas. Ele tem sentimentos exagerados de auto importância, um desejo forte de admiração, um imenso senso de ter direito sobre algo, e demonstra grandiosidade em seu comportamento e crenças. Quem de nós já conviveu com indivíduos com autismo por algum período sabe que esses traços são quase opostos se comparados aos associados com Asperger e Autismo de Alto Funcionamento.

1, 2 Notas do tradutor.

 Artigo 3


Sentindo Compaixão por Narcisistas: Os Argumentos Contra e a Favor

Por Steve Phillips-Waller

Steve Phillips-Waller é pesquisador independente de psicologia, autor do blog A Conscious Rethink, que fala sobre autoconhecimento e conscientização nas mais diversas facetas da experiência humana, procurando oferecer insights que melhorem a caminhada pela vida. Steve tem uma página no Facebook com mais de 1 milhão de seguidores. Ele reside em Londres, Inglaterra. O texto original em inglês pode ser acessado aqui.

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Deveríamos sentir compaixão pelos narcisistas entre nós? Esta é a difícil questão lançada nesse artigo.

Olhando da superfície, você pode achar que essa é uma pergunta ridícula a se fazer – por que deveríamos nos importar com alguém que não se importa com os outros? Olhe um pouco mais a fundo, no entanto, e há alguns argumentos genuínos que sugerem que devamos sentir pena dessas pobres almas em vez de apenas classificá-las como tóxicas.

Porém, é mais definitivamente uma faca de dois gumes. Há muitas razões para que não sintamos nada além de ressentimento por eles, e tentaremos olhar ambos os lados do debate abaixo.

[…]

Razões Pelas Quais Deveríamos Ter Compaixão por Narcisistas

Vamos deixar uma coisa clara: sentir compaixão por um narcisista não significa que você deva aceitar ou perdoar as ações dele. Quando você passa a considerar a condição mais subjetivamente (de modo menos pessoal), contudo, você pode decidir que a melhor resposta a ela é a de compadecer-se.

O narcisismo pode ser considerado uma doença mental tal que impacte severamente a vida dos que sofrem dessa condição. A causa exata é desconhecida e é provável que haja diversos caminhos que levem as pessoas ao narcisismo. Tal como sua própria personalidade, será uma combinação de genética e experiências de vida. Este é um argumento importante para sentir compaixão por narcisistas. Eles se constituíram dessa forma devido a fatores que estiveram largamente além do controle deles durante seu desenvolvimento. Pode ser que não sejam mais responsáveis por suas questões que alguém que sofra de ansiedade severa ou bipolaridade.

Você precisa se perguntar se um narcisista escolhe ser dessa forma por livre e espontânea vontade.

Nós podemos nos compadecer com um narcisista quando descobrimos o quão infelizes muitos (mas nem todos) provavelmente são. Muitos de seus comportamentos derivam de auto aversão que os deixa agressivos e frustrados. Eles lançam isso sobre os outros como um mecanismo de enfrentamento, o que não mascara o fato de que, lá no fundo, eles estejam experienciando uma grande dor eles próprios.

Outra parte da triste realidade de muitos narcisistas é que eles lutam para construir e manter qualquer relacionamento real. Eles podem sentir pouca conexão com suas famílias, ter poucos amigos e pularem de um relacionamento desastroso para o outro.

Agora ponha-se no lugar deles por um momento e imagine como isso deve ser (algo que narcisistas são tipicamente incapazes de fazer). Imagine uma vida onde você é incapaz de sentir amor, intimidade, compaixão e afeto. O quão solitária você acha que uma existência assim deve ser?

Ao longo do tempo, eles irão afastar para longe um grande número de pessoas que se importam com eles e serem deixados com nada além de cascas vazias de ressentimento e dor.

Finalmente, você deve poder sentir compaixão por narcisistas porque lhes falta a capacidade de crescer – tanto pessoal como espiritualmente. Muitos jamais entenderão o mundo e seu lugar nele, nunca sentirão um senso de conexão com o resto do universo e nunca serão capazes de se melhorem como pessoas.

Reúna tudo o que foi dito acima e você pode começar a entender como alguém pode conseguir alguma compaixão por narcisistas.

Razões Pelas Quais Não Devemos Sentir Compaixão Por Narcisistas

Aqueles que se submeteram à companhia de um narcisista por qualquer período de tempo que tenha sido, sem dúvida lhe dirão o quão esgotantes eles podem ser. Não surpreendentemente, portanto, os principais argumentos contra sentir compaixão por eles têm a ver com o comportamento e tratamento deles para com as outras pessoas.

É quase universalmente verdade que narcisistas são personalidades particularmente destrutivas para se ter por perto. Eles não são minimamente referência de paz e serenidade; parecem se regozijar em caos e desgraça. Talvez porque qualquer forma de estabilidade dê à mente deles tempo para refletir sobre o seu próprio sentimento de infelicidade, é que permaneçam para sempre encontrando maneiras de fomentar problemas.

Além disso, aqueles que se encontram numa relação próxima com um narcisista – tanto parceiros quanto familiares – vivenciam um comportamento que só piora com o tempo. Eventualmente, a forma com que o narcisista trata essas pessoas se configura em abuso muito devastador. Eles são responsáveis por destruírem vidas e fazer com que os outros se sintam desprezíveis. Eles são capazes de ataques brutais às mentes daqueles a quem são próximos e podem deixar suas vítimas dilaceradas por toda uma vida.

Além disso, a sociedade é geralmente muito clara quanto ao que seja um comportamento aceitável ou não, de modo que narcisistas são, então, bem conscientes de que suas próprias ações sejam condenáveis pelos outros. É preciso ser dito, portanto, que agem com plena consciência do mal que estejam cometendo e das vidas que estão afetando.

O que é particularmente difícil de digerir para a maioria é que narcisistas geralmente mostram pouco ou nenhum remorso pelas coisas que fazem, além de tentarem pôr a culpa nos outros. Eles se mostram frios e calculistas, nem um pouco impactados pela angústia que causam.

E o mais triste de tudo, talvez, seja o fato de que muito poucos narcisistas jamais farão as mudanças necessárias para reduzir sua influência negativa. A terapia pode ajudar alguns a melhorarem a forma como abordam os outros, mas “curar” uma personalidade narcisista é praticamente algo do qual nunca se ouviu falar.

[…]

8 comentários sobre “Síndrome de Asperger (SA) ou Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN): qual o diagnóstico correto?

  1. Pingback: Amor e Síndrome de Asperger | Síndrome de Asperger

  2. Estava lendo esse texto e resolvi compartilhar uns conteúdos atuais que ando lendo.

    Alguns pesquisadores hoje acreditam que os transtornos podem ser vistos como um continuum de adaptações para estratégias de história de vida mais lentas ou mais rápidas. Em suma, pessoas que seguem estratégia rápida são adaptadas para contextos de baixa expectativa de vida, onde é mais adaptativo ter sucesso reprodutivo o mais rápido possível. O organismo todo se organiza para suprir essa necessidade: a puberdade é adiantada, a menarca é adiantada, a concepção do primeiro filho ocorre mais cedo, e também concebe-se uma maior quantidade de filhos e de parceiros sexuais ao longo da vida.

    Por outro lado, indivíduos que se desenvolvem em ambientes mais estáveis e com mais recursos desenvolvem estratégia de história de vida lenta. Isso porque eles podem adiar a reprodução para investir em recursos que mais tarde serão investidos na prole. Eles basicamente se reproduzem mais tarde, geram menos filhos e acumulam mais recursos como forma de investimento parental maior.

    Alguns transtornos parecem ser manifestações extremas desses tipos de estratégias. Por exemplo, pessoas com transtorno de personalidade antissocial, narcisista e borderline parecem seguir padrões de estratégia rápida. Eles tendem a ser sexualmente promíscuos, ter menos aversão a riscos, mais impulsivos.

    Já o autismo tem sido apontado como um transtorno associado a estratégia lenta. Pessoas com autismo tendem a ser menos sexualmente promíscuas, tendem a ser mais capazes de adiar recompensas. Ainda existem poucos indícios, especialmente sobre o autismo. Mas tudo indica que o autismo é uma consequência da seleção de genes associados à inteligência ao longo da evolução. E alguns aspectos associados à inteligência alta também estão relacionados com estratégia de história de vida lenta.

    Uma das coisas que pode explicar a prevalência do autismo hoje é que pessoas com altos níveis de traços autísticos, não necessariamente autistas, tendem a seguir estratégia lenta, a acumular recursos. Homens com alto status social (i.e. muitos recursos, alto nível educacional etc) são mais atraentes para mulheres, especialmente as que também seguem estratégia de história de vida lenta, então eles acabam tendo sucesso reprodutivo.

    • Olá, Felipe. Obrigada pelo rico comentário.

      A abordagem biológica é, de fato, interessante e contribui para o entendimento de inúmeras manifestações adaptativas da espécie humana. O conceito de continuum/espectro é válido para todos os transtornos mentais. No entanto, embora o termo “adaptação” seja bastante válido para transtornos que não sejam tão determinados por disfunções neurológicas, o que é o caso dos transtornos de personalidade (antissocial, narcisista, borderline), eu já não diria o mesmo para transtornos como o autismo, a começar pelo fato de que as adaptações são relativas ao tipo de ambiente em que a pessoa cresce, ocorrendo sobre um sistema neurológico sem disfunções iniciais, apesar de muito possivelmente haver alguma carga genética atuante. No caso do autismo, o déficit neurológico é anterior à influência do ambiente, sendo determinado ainda em fase embrionária, de modo que o indivíduo no espectro do autismo não disponha de muita possibilidade em empregar estratégias adaptativas em resposta ao ambiente como ocorre em transtornos de personalidade.

      Prova disso são alguns dos trechos que você citou que não atendem à teoria biológica como foi suposto. Por exemplo: pessoas com autismo não são geralmente capazes de adiar recompensa, pelo contrário, são imediatistas e, na maioria dos casos, têm inclusive transtornos de ansiedade como comorbidade, o que, biologicamente falando, é uma verdadeira bomba para o organismo, pois causa inflamação e morte dos neurônios, bem como uma série de outras disfunções que não estariam em sintonia com a ideia de história de vida lenta. A própria dificuldade de socialização, que é um déficit central no autismo, dificulta a hipótese de história de vida lenta, pois põe em risco a sobrevivência do indivíduo enquanto espécie, haja vista que o papel da socialização é aumentar a expectativa de vida e alcance de recursos de sobrevivência. Só sobrevivemos enquanto espécie porque nos organizamos em bandos, ou seja, sociedades.

      No entanto, a ideia de que o autismo ocorra como consequência da seleção de genes associados à inteligência ao longo da evolução faz pleno sentido. Como a evolução nunca se dá de maneira uniforme, e sim, em saltos, é possível que as pessoas com autismo de hoje sejam o “elo do meio” entre um funcionamento cerebral com potencialidades mais desenvolvidas (a poda neuronal nos autistas costuma ser muito menor se comparada à pessoa sem autismo, o que faz parecer uma tentativa do organismo em preservar o máximo de capacidade mental), e, como elo do meio, ainda não encontrou um ponto de equilíbrio, ou seja, alguns aspectos do funcionamento cognitivo foram potencializados, mas o cérebro não ainda não encontrou meios de coordenar isso com as outras funções existentes.

      Fazendo um parêntese sobre uma das características que você mencionou para pessoas com transtornos de personalidade, a impulsividade, muitas vezes pessoas com transtornos narcisistas ou antissociais, por exemplo, não são impulsivas, enquanto pessoas com autismo podem ser absolutamente impulsivas, dado o déficit no lobo frontal do cérebro comum no autismo, que á a região responsável justamente pelo controle dos impulsos. Crianças com autismo têm imensa dificuldade em regular o sistema nervoso e impedir as famosas crises, que são respostas imediatas (impulsivas) às frustrações geradas pelo ambiente, o que, novamente, seria oposto à estratégia lenta proposta pela teoria biológica mencionada. O apego à rotina e previsibilidade no autista, que parece contrário à ideia de impulsividade, é, na verdade, mais um produto da rigidez mental típica do quadro, do que uma ação anti-impulsiva.

      Em relação ao seu último parágrafo, sobre uma explicação para a prevalência do autismo hoje, outra hipótese possível é que pessoas com traços de autismo (mesmo que não tenham o quadro completo) tendem a se identificar/ter afinidade com pessoas com funcionamento parecido que, portanto, provavelmente também carregam genes autistas, de modo que acaba sendo frequente a formação de casais onde ambos tenham carga genética para o autismo, que ganha força e manifesta a síndrome completa na criança fruto dessa união. Interessantemente, isso pode apoiar a hipótese evolutiva do autismo, como se os organismos reconhecessem no grupo os pares mais propensos a disseminarem o gene, o que também é verdade para pessoas com alto QI, que costumam acabar se associando a outra pessoas com QI similar, propagando, assim, genes de alta inteligência na espécie humana.

      Seja sempre bem-vindo ao blog.

  3. Texto muito bem escrito e detalhado e esclarecedor.Convivo a 5 anos com um autista que tem fortes traços narcisicos, identifiquei no texto 90% dos dois em uma pessoa só, asperger e o narcisista vulnerável. Percebi que o consumo alcoólico aflorou mais o lado narcisico da pessoa com o tempo. Sabemos que é uma raridade, mas temos em minha casa então esse caso único. A pessoa se enquadra nos dois casos perfeitamente, infelizmente.
    Se um autista é difícil, se um narcisista é muito difícil, imagine ter os dois em uma pessoa só.
    Uma tarefa quase impossível pelo menos para mim que nem médica sou, muito menos a mãe dessa pessoa, inclusive esta mãe que eles precisam tanto se separar.
    A mim só cabe mesmo reconstruir o que sobrou de mim e graças a Deus e a Internet e textos como esse, sobrou algo que pretendo curar.

    • Olá, Renata. De fato, é uma batalha colossal e infrutífera tentar ajudar e conviver com um perfil narcisista. Infelizmente, são pessoas não apenas autodestrutivas, mas que também levam com elas quem estiver no seu entorno. Acabamos ficando com a única opção de pular do barco para não afundar junto e garantir a autopreservação. Desejo que encontre caminhos que lhe tragam paz e novas chances de reconstruir a si mesma. A psicoterapia pode ser de grande ajuda nesse processo. Um abraço e boa sorte.

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