Problemas no padrão de pensamento da pessoa com a síndrome de Asperger

 

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Esta publicação é uma tradução livre de trechos do Capítulo 5 – Thinking Patterns, do livro The Asperger’s Answer Book, da autora americana Susan Ashley, Ph.D, fundadora e diretora do Centro de Psicologia Infantil Ashley, na Califórnia – EUA, também especializada em TDA e TDAH.

Ao longo da leitura, é sempre importante lembrar que o autismo se desenrola num espectro, ou seja, alguns têm certos traços de forma mais suave, outro de forma mais mediana e outros, ainda, de modo mais intenso.


Tradução: Audrey Bueno

Capítulo 5 – Padrões de Pensamento (p. 106 a 112)

Por Susan Ashley

Quais são os problemas no padrão de pensamento da pessoa com a síndrome de Asperger?

Se tivéssemos que escolher uma característica da síndrome de Asperger como sendo a mais prejudicial, esta seria provavelmente a dos problemas de pensamento. As deficiências no pensar têm pouco a ver com o pensar em termos de inteligência ou ter a habilidade de aprender. Em vez disso, tais deficiências relacionam-se à forma com que os indivíduos com Asperger pensam sobre pessoas, interações sociais e relacionamentos.

Portadores da síndrome de Asperger não têm problemas em pensar sobre como as coisas funcionam, mas têm grande dificuldade em entender como as pessoas funcionam. Os problemas de pensamento vistos na síndrome incluem:

  • Não ter consciência dos sentimentos alheios
  • Inabilidade em ler as intenções dos outros e supor o que estejam pensando
  • Dificuldade em ver as perspectivas alheias
  • Interpretação literal do que os outros dizem
  • Ver as coisas preto no branco, ou seja, oito ou oitenta, sem meio-termo
  • Pensamento composto por regras
  • Pensamento catastrófico
  • Pensamento rígido e perseverativo¹
  • Inaptidão em generalizar

¹ [Nota do tradutor: exemplos de pensamento rígido são o hiperfoco num determinado assunto apenas, os rituais obsessivos – como, por exemplo, usar sempre um mesmo copo ou querer ir sempre por um mesmo caminho – e a constante criação de regras mentais para a maior parte das coisas; perseveração refere-se ao tempo em que o indivíduo perdura numa mesma coisa.]

 

O que é a Teoria da Mente?

É a habilidade de fazer atribuições. Atribuições são os pensamentos que criamos sobre os outros para explicar o que acontece em nossas interações e observações sobre eles. Ninguém nos ensina realmente como fazer atribuições; nós simplesmente fazemos isso automaticamente. Na maioria das vezes, podemos fazer boas suposições sobre as intenções de alguém. Dessas inferências², nós determinamos como reagir às pessoas. Crianças com a síndrome de Asperger, contudo, não sabem como fazer atribuições. Isso é porque são deficientes em Teoria da Mente (ToM = Theory of Mind, em inglês). [² Grifo do tradutor.]

O conceito de Teoria da Mente também já foi chamado de cegueira mental, mentalização e leitura mental. Cada um desses termos define a habilidade de inferir o que os outros estão pensando, sentindo, acreditando e desejando, e quais são suas intenções e motivações. Usando a ToM, podemos dar sentido ao que as pessoas dizem e fazem e prever o que farão a seguir. Em essência, nós podemos nos colocar no lugar do outro. Usar a ToM nos dá entendimento sobre os outros que nos permita guiar nossos comportamentos e interações com eles.

Crianças e adolescentes com Asperger são deficientes na ToM. Eles não compreendem que as outras pessoas têm pensamentos e sentimentos diferentes dos deles. Eles têm considerável dificuldade em se colocar no lugar de alguém.

 

Qual o impacto de uma Teoria da Mente pobre?

Problemas com a ToM podem ter um impacto negativo bastante significativo nas interações sociais e relacionamentos de pessoas com Asperger. Virtualmente todo encontro social requerer o uso da ToM. Por ter um déficit nessa habilidade, a criança com Asperger pode cometer erros sociais incontáveis todos os dias, à medida que faz o que quer sem considerar o impacto nos outros.

Sem a ToM, a criança com Asperger não consegue determinar como alguém se sente. Sua dificuldade em ler a expressão emocional nos olhos e rostos resulta em insensibilidade em relação às outras pessoas. Esta criança será percebida como rude, fria e desrespeitosa, embora não tenha o intuito de sê-lo. Esta criança não consegue decifrar intenções e, portanto, interpreta mal as razões por trás das ações das pessoas. Ao ter dificuldade em distinguir entre ações intencionais e acidentais, esta criança pode parecer quase paranóide, pois geralmente acredita que os outros estejam contra ela. Ao não ser capaz de considerar os sentimentos de alguém, a criança com Asperger pode ser rude ao ponto do insulto. Quando o conflito ocorre, a criança não enxerga a perspectiva da outra pessoa e insistirá rigidamente que quem está certa é ela. Ela geralmente não reparará relacionamentos com pedidos de desculpas por não reconhecer ou compreender que o outro esteja chateado. Esses erros sociais repetidos causam rejeição dos pares. Porém, há formas de ensinar estratégias e melhorar as habilidades de ToM dessa criança³.

³ [Nota do tradutor: acompanhamento psicológico voltado à modelagem de comportamento social pode ser muito útil.]

 

Como a Teoria da Mente é medida?

Não há testes formais que meçam ou diagnostiquem ToM. Contudo, há diversas técnicas que podem dar a um avaliador uma ideia do nível de ToM que a criança desenvolveu. Uma dessas técnicas é a tarefa dos “MM’s”. Nessa tarefa, mostra-se à criança uma embalagem de MM’s (pequenos chocolates redondinhos e coloridos, que podem ser substituídos por qualquer doce ‘famoso’, na verdade). Pergunta-se à criança o que está dentro da embalagem e em vez de doces, mostra-se a ela que dentro há moedas. É dito à criança que agora a embalagem do doce será mostrada à sua mãe (que não está presente nessa hora) e pergunta-se o que ela acha que a mãe irá dizer que há dentro da embalagem. As crianças que têm a habilidade de ToM dirão que a mãe vai imaginar que existam doces na embalagem (aos quatro anos a maior parte das crianças já pode ser capaz de supor isso e aos cinco anos praticamente todas as crianças sem autismo são capazes de fazê-lo). Crianças com Asperger geralmente não compreendem que o examinador esteja fazendo uma brincadeira colocando moedas em vez de doces na embalagem. Elas também não entendem a diferença entre o que elas sabem e o que os outros sabem.

 

Como a Teoria da Mente é medida em crianças mais velhas e adolescentes?

Entre as idades de seis e doze anos, a ToM pode ser acessada através do teste das Histórias Estranhas (Strange Stories test, em inglês). As histórias começam com histórias simples de situações sociais. Por exemplo, para testar se a criança compreende que suas palavras podem magoar os outros, ela ouve a história de um menino que odeia o presente que os pais lhe dão mas, apesar disso, diz aos pais que adorou o presente. A maioria das crianças em torno dos sete anos entende que esse tipo de “mentira branca” é aceitável quando a intenção é evitar magoar alguém. A criança com Asperger, de mesma idade, não entende por que o garoto iria mentir. Nesse teste, as histórias se tornam mais complexas e testam habilidades de ToM mais sofisticadas, tais como o entendimento de brincadeiras, fingir, mal-entendidos, persuasão, figuras de linguagem, ironia, esquecimentos, blefes e emoções contraditórias. Histórias da Vida Cotidiana (Stories From Everyday Life, em inglês) é uma outra ferramenta que avaliadores e terapeutas podem usar para medir e monitorar o progresso da ToM da criança.

 

Por que a Teoria da Mente é tão importante?

Praticamente toda interação social que temos com as pessoas requer o uso da ToM. Nos conectamos e nos identificamos com aqueles que notam nossos sentimentos e fazem comentários a respeito, os validam, e nos oferecem apoio. Aqueles que ignoram, minimizam ou criticam nossos sentimentos não são geralmente convidados a permanecerem em nossas vidas. Crianças e adolescentes que têm déficit na ToM têm grande dificuldade em fazer um amigo devido a inabilidade em entender o sentimento dos outros.

Nós também escolhemos amigos com quem possamos conversar e compartilhar ideias. Pessoas que ignoram o que dizemos, mudam de assunto e monopolizam a conversa são rapidamente julgadas por não terem as qualidades desejadas para conversações futuras, quanto mais para uma amizade.

A criança com Asperger muitas vezes não reconhece quando feriu os sentimentos de alguém e, portanto, não faz nada para reparar isso. Ela também costuma não aprender com os próprios erros. Ela pode nem ao menos dar-se conta de ter feito algo errado. Mesmo que lhe digam que o que ela disse ou fez magoou alguém, ela não consegue entender por que a outra pessoa se sentiria magoada com aquilo.

Sem a habilidade de pensar sobre o que os outros estejam sentindo e pensando, a criança ou adolescente com Asperger acaba tendo pouca chance de ser incluída em conversas, brincadeiras e atividades com seus pares.

 

Qual é o desenvolvimento normal da Teoria da Mente?

A Teoria da Mente (ToM) se desenvolve automaticamente para a maioria das crianças, sem qualquer necessidade de instrução. Aos 9 meses, bebês já conseguem manifestar os estágios iniciais da ToM. Ao engajar em atenção conjunta, eles buscam apontar objetos para os outros para compartilhar a alegria. Um bebê aponta objetos e observa os pais para ver se eles riem, mostrando ao bebê que se alegram com aquilo também. Não apontar objetos e ter uma experiência compartilhada de prazer é um dos primeiros sinais de autismo/síndrome de Asperger e sugere falta de ToM.

Acerca de 1 ano e meio, a ToM avança para incluir brincadeiras de faz-de-conta, onde o bebê pode usar objetos de forma imaginária em vez de somente no propósito especifico do objeto. Ele pode usar uma caixa como sendo um trem ou um pauzinho como varinha mágica. A criança com Asperger costuma não ter essa brincadeira imaginativa, o que é mais um sinal da síndrome. Elas raramente engajam em brincadeiras de faz-de-conta4.

4 [Nota do tradutor: é importante lembrar que a criança com Asperger ou autismo se encontra sempre num espectro, que vai desde a manifestação mais leve dos sintomas até maiores níveis de severidade e comprometimento, variando, portanto, enormemente de um indivíduo para outro. Assim, enquanto algumas não apresentam qualquer brincadeira imaginativa, outras podem apresentar um bom número delas, embora, em comparação a uma criança neurotípica, ou seja, sem autismo, isso vá ocorrer com menor frequência ou extensão, sendo comum que crianças com Asperger prefiram brincadeiras mais concretas, geralmente de imitar as coisas que acontecem no cotidiano ou o funcionamento de algum equipamento ou objeto. Por exemplo, se a criança vai ao mercado, chega em casa e brinca de mercado. Se vai ao zoológico, em casa brinca de zoológico. Se a professora usou uma pistola de cola quente na escola, em casa vai brincar de usar o mesmo equipamento. Esse tipo de brincadeira imitativa também ocorre com crianças sem autismo, mas a frequência e intensidade de um e outro tipo de brincadeira irão variar bastante, sendo a criança sem autismo muito mais fantasiosa que a criança no espectro. Enquanto a criança sem autismo brinca de raios mágicos passando por cima de suas cabeças, a criança com Asperger brinca com trens, sinais de trânsito, desenha bandeiras, faz representações concretas do mundo nos desenhos – desenha os objetos do entorno em vez de cavalos alados, por exemplo.]

Ao final do segundo ano, as crianças começam a perguntar sobre o que os outros estão conversando, fazendo ou pensando. Enquanto elas não podem, ainda, supor o que a outra pessoa esteja pensando, elas entendem que os outros têm pensamentos e sentimentos que podem ser diferentes dos seus. A criança com Asperger, por outro lado, não costuma fazer tais observações sobre os outros ou perguntar o que estão fazendo ou o porquê de estarem fazendo aquilo.

Aos três anos, as crianças entendem que ver algo leva a saber sobre aquilo. Elas intuem a ideia de que se alguém não viu algo acontecer, não saberá que tal coisa ocorreu. Em contraste, crianças com Asperger acham que todos sabem o que eles sabem mesmo que a outra pessoa não tenha estado lá para observar o ocorrido.

Aos quatro anos, as crianças começam a desenvolver a habilidade de supor o que o outro esteja pensando. Elas podem imaginar por que uma outra pessoa está fazendo uma determinada coisa e podem supor como alguém que sente. Nesse momento, elas têm ToM. Crianças com Asperger costumam nem ao menos pensar sobre como as outras pessoas podem estar se sentindo, ou o que podem estar pensando ou fazendo.

À medida que as crianças ficam mais velhas, vão desenvolvendo habilidades de ToM complexas. A criança com Asperger, no entanto, apresenta considerável atraso e permanece presa no estágio de apenas considerar o que ela própria esteja pensando.

 

É possível ensinar Teoria da Mente para crianças com a síndrome de Asperger?

Profissionais da área da saúde mental acreditam que, até certo nível, crianças e adolescentes com a síndrome podem aprender ToM. Através de treinamento em emoções, habilidades sociais e “leitura da mente”, o indivíduo com Asperger pode adquirir alguma habilidade para entender o que os outros estão pensando e sentindo e usar essa nova habilidade adquirida para guiar suas palavras e comportamento.

Enquanto a ToM vem naturalmente para as outras crianças, a criança com Asperger precisa ser ensinada sobre o que a ToM seja e por que é importante usá-la. Esta criança na verdade precisa percorrer um checklist de perguntas:

  1. O que esta outra pessoa está pensando?
  2. Por que ela está fazendo determinada coisa?
  3. Como ela se sente nesse momento?
  4. O que ela fará ou dirá em seguida?
  5. Como eu deveria responder?

Processar tudo isso leva tempo para uma criança com Asperger.

Quando estas crianças recebem treinamento em ToM, elas aprendem a cometer menos erros sociais. Contudo, o modo com que usam as habilidades de ToM costuma fazer com que sejam percebidas como lentas e robóticas. É como se elas aprendessem os passos para a dança, mas não tivessem ritmo.

6 comentários sobre “Problemas no padrão de pensamento da pessoa com a síndrome de Asperger

  1. Ler essa tradução, e a breve troca de comentários que há aqui embaixo, tem sido, nas últimas semanas, uma das melhores formas de acolhimento, alívio e autopreservação que já pude experimentar na vida. Resisto, resisto, resisto; quando esmoreço e chego a pensar que sou tudo o que dizem, volto a acreditar em mim. No que sei de mim, no que sei que sou. Obrigada, muito obrigada.

    • Agradeço muito seu comentário. É de uma satisfação inestimável saber que o blog consegue alcançar pessoas e ajudá-las em sua jornada. Pessoas que vivenciam os desafios do autismo são lutadoras, pois sobreviver todos os dias num mundo que não foi feito para elas é um ato heroico. Antes de sentir inadequação, talvez seja interessante lembrar que a normalidade é, sobretudo, uma ilusão, pois a sociedade atual também tem sua própria loucura, que é a de perseguir um padrão de vida perfeito que não é atingível à maioria massiva das pessoas. O Facebook é uma prova disso: as pessoas ostentam falsas imagens da própria vida, sorrindo na foto enquanto choram na vida real. Outra prova disso é que a ansiedade e a depressão são o mal do século. No fundo, ninguém vive a vida que a sociedade proclama ser a ideal. Como essa ilusão social é a mais comum na massa hoje em dia, muitos apontam o Aspie como estranho, inadequado, especialmente porque são minoria. Se fossem maioria, teríamos a chamada “síndrome neurotípica” e o padrão Aspie seria a norma. Embora certamente haja dificuldades que podem ser consideradas patologias no funcionamento autista, pessoas ditas ‘normais’ todas têm patologias também, que são, apenas, patologias diferentes. Faz parte da condição humana ter patologias diversas. Porém, há muitas características que são consideradas um problema sem de fato serem. Por exemplo, a honestidade do Aspie tornaria a sociedade um lugar mais transparente, menos corrupto e menos traiçoeiro. O perfeccionismo do Aspie garantiria muito mais qualidade nos serviços prestados e avanços científicos (como já garantiu, inclusive, afinal, diversos grandes gênios da humanidade tinham traços autistas). Muita coisa é, portanto, uma questão de perspectiva: assim como há déficits no neuroatípico, há déficits no neurotípico. Assim como há excessos no neuroatípico, há excessos no neurotípico. Assim como há qualidades no neuroatípico, há qualidades no neurotípico. Portanto, não se compare a ninguém, cada um de nós é o que é, sempre com pontos fortes e fracos, com diferenças que nos tornam quem somos e isso, por si só, deve bastar. Como diz numa música que gosto muito, chamada “Scars” (Cicatrizes), de Zakk Wylde: “Pois cada céu que brilha, há de encontrar a tempestade, pois minha força de vontade não há de quebrar, embora possa dobrar”. Ou seja, sorrimos, choramos, e, como o galho de uma árvore que se dobra, esmorecemos muitas vezes, mas lutamos para que esse galho não se quebre, ou seja, para que não desistamos da luta, pois somos todos habitantes da árvore da vida. Seja sempre bem-vinda ao blog. Deixo o link da música para você. https://www.youtube.com/watch?v=BIRfnRpcJws

  2. Eu sou recém formado em psicologia e acabei encontrando este artigo por conta do personagem Sheldon da Série “The Big Bang Theory” Sou pessoa com paralisia cerebral e sempre tive dificuldade pra me encaixar em convenções sociais, principalmente se elas exigem algum tipo de atividade física. Já trabalhei com uma pessoa asperger, tudo fica muito mais fácil quando você sabe e reconhece as condições que levam às pessoas terem as dificuldades que elas tem. É um tipo de conhecimento que elevou a minha empatia. Obrigado!

    • Fico feliz em saber que o artigo lhe tenha sido útil! Você já se mostra sendo um excelente psicólogo, pois o caminho é esse mesmo: conhecer para que se exerça a melhor empatia. Boa sorte em sua caminhada. Seja sempre bem-vindo ao blog.

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